Crítica: O Franco Atirador (1978)
Ficha técnica:
Direção: Michael Cimino.
Elenco: Robert De Niro, Meryl Streep, Christopher Walken, John Savage, John Cazale, George Dzundza e Chuck Aspegren.
Nacionalidade e data de estreia: Estados Unidos, 8 de dezembro de 1978.
Sinopse:
Três amigos se divertem na festa de casamento de um deles. Pouco tempo depois, eles mergulham no inferno da guerra, e são forçados a jogar partidas mortais de roleta russa.
A vida como uma roleta russa
Década repleta de turbulências e escândalos, os anos 70 foram cheios de fatos que marcaram os Estados Unidos de forma extremamente negativa. Se Hollywood por muito tempo mostrou os filmes de guerra – dos anos 20 aos anos 50 – de forma imponente e heroica, esse retrato começou a mudar em meados do final dos anos 60, quando o cinema se libertou das amarras da censura e se deu conta que o American Way of Life estava em decadência há um bom tempo.
Com filmes como “A Última Sessão de Cinema” (1971), “Chinatown” (1974) e “Taxi Driver (1976), mostrando um lado mais realista e amargo da sociedade norte-americana, o cinema também não poupou críticas aos conflitos bélicos que arrasaram a vida de milhares de soldados e a economia dos países envolvidos no conflito.
No ano de 1978, o diretor Hal Ashby nos apresentou “Amargo Regresso”, filme que mostra Jon Voight no papel de um soldado no Vietnã, retornando para casa paraplégico em uma cadeira de rodas, e no hospital se relacionando com uma enfermeira casada (feita por Jane Fonda). No mesmo ano, outra produção também mostrou as amarguras e desilusões de soldados na volta ao lar, tentando se readaptar à antiga vida. Porém, “O Franco Atirador”, ao contrário do filme de Ashby, não se centra apenas na trajetória de um único personagem.
Dirigido de forma magistral pelo diretor Michael Cimino, “O Franco Atirador” antes nos mostra – em sua primeira hora de duração – uma festa de casamento de um dos amigos (John Savage). Os outros dois amigos: Michael (Robert De Niro) e Nick (Christopher Walken) se divertem como podem na festa. Os três estão de malas prontas para o Vietnã, e durante toda a cerimônia festiva, eles nos são apresentados de forma descontraída, principalmente quando se juntam a Stanley (John Cazale), John (George Dzundza) e Axel (Chuck Aspegren).
Muita dança, farra e bebedeira se intercalam com momentos mais intimistas pelas ruas e em suas residências, como a atração proibida de Michael pela jovem Linda (Meryl Streep), que é namorada de Nick, e quando Nick lidera o grupo de amigos pelas montanhas para caçar veados. Os momentos em que Nick, com um rifle, se concentra na caçada (o que justifica o título original) são belíssimos, onde a magnífica fotografia, aliada a uma trilha sonora magistral, torna tudo aquilo uma pintura em movimento. Aliás, a música desse filme é de uma expressão notável. Cavatina, de Stanley Myers, tem uma sonoridade marcante e inesquecível, dando maior força e dimensão dramática à obra.
O que podemos chamar aqui de primeiro ato é um momento de respiro para os seus personagens, até entrar o segundo ato e eles se verem mergulhados no inferno da guerra que mudará para sempre suas vidas.
Em campo de combate, capturados pelo inimigo, Michael, Nick e Steven (Savage) vivem momentos de total desespero quando, a qualquer momento, eles podem ser escolhidos e forçados a participarem de um mortal jogo de roleta russa, onde apenas um dos dois participantes sairá vivo. Poucas vezes o cinema mostrou uma sequência tão tensa e agonizante. Depois disso, o que vemos é a história de três homens emocionalmente despedaçados em busca de um sentido na vida.
De Niro está excelente no papel principal (ele foi indicado ao Oscar, Globo de Ouro e BAFTA de melhor ator). Seu personagem é o mais racional, o que tenta retornar para casa, mas acaba se dividindo entre um relacionamento com Linda e a decisão em voltar para aquele Vietnã em chamas e trazer seus amigos de volta. Suas tentativas de busca o levarão a revelações traumáticas que ele desejaria jamais ter desenterrado.
“O Franco Atirador” é de longe um dos melhores dramas de guerra já produzidos. Da direção inspirada de Cimino ao elenco excepcional e um roteiro exemplar, tudo funciona perfeitamente. Walken tem o personagem mais dramático e intenso, e a cena em que um médico lhe faz uma pergunta, justifica o Oscar de melhor ator coadjuvante que ele levou. Meryl, em sua primeira indicação ao Oscar, entrega uma atuação sensível e comovente. Naquela época Meryl era noiva de Cazale, ator que participou dos excelentes “O Poderoso Chefão” (1972), “O Poderoso Chefão – Parte II” (1974), “A Conversação” (1974) e “Um Dia de Cão” (1975). Com câncer terminal, ele morreria pouco depois do fim das filmagens de “O Franco Atirador”.
Com 183 minutos de duração, “O Franco Atirador” nos mostra muito mais que o horror da guerra, ele nos mostra o horror das más lembranças que ficam presentes para sempre, a insegurança e o desconforto de uma nova vida, o embate emocional, a solidão e o desespero em um quarto de hotel. Conflitos internos e sentimentos desencontrados que se enraízam na vida de homens derrotados por uma guerra sem vencedores. As sequências de torturas na guerra são propositalmente incômodas, mas o que mais destrói naquilo tudo é a incerteza. A cada momento, a cada movimento, a cada giro do tambor do revólver, Michael, Nick e Stanley se veem atormentados pela morte que os cercam.
Vencendo também os Oscars de melhor filme, direção, edição e som, o Globo de Ouro de melhor direção e o BAFTA de melhor edição e fotografia, “O Franco Atirador” é cinema cru e brutal, cinema que nos incomoda. Com cenas intimistas, dolorosas e cruéis saltando a todo momento aos nossos olhos, o que fica ao final de tudo é uma obra impactante e atual, mostrando os diferentes lados da guerra e seus efeitos traumáticos.