Netflix, Oscar, “Roma” e a Gentrificação do Cinema
s.f. gen.tri.fi.ca.ção Ação que consiste no restabelecimento do setor imobiliário degradado que, constituído pela restauração ou revigoração de imóveis, faz com que esses lugares, supostamente populares, sejam enobrecidos.
No ano de 2019 teremos grandes chances de vermos um filme Original Netflix ganhando um Oscar de Melhor Filme Estrangeiro assim como poderemos conferir pela primeira vez na história um prêmio de Melhor Diretor ir parar nas mãos de um cineasta que fez uma obra lançada diretamente em streaming. Estamos falando de “Roma”, do diretor mexicano Alfonso Cuarón, obra Original Netflix que teve exibições concomitantes entre salas de cinemas e lares do mundo todo. Essa discussão Cinema x Netflix é antiga e temos até alguns podcasts da casa discutindo o assunto, como foi o caso do #289 – Tem na Netflix? ou mesmo o #224 – A Netflix Vai Matar o Cinema?. Porém a ideia deste artigo não é debater Netflix x Cinema e sim Cinema x Público.
Durante a cerimônia do Globo de Ouro, Alfonso Cuarón levantou um debate que já vem sendo esboçado em grupos de cinéfilos mas ainda de forma bastante incipiente. Vou deixar o vídeo abaixo para que todos possam ter ciência, mas caso não possam assisti-lo, farei um resumo logo após.
Alfonso Cuarón fala sobre uma gentrificação do cinema onde um filme como “Roma”, falado em espanhol e mixteco teria pouco ou nenhum espaço em salas que contemplam o circuito comercial permitindo apenas que uma elite tivesse acesso ao filme. Poderíamos nos concentrar na problematização das distribuidoras e na relação com filmes comerciais, mas o que realmente chama a atenção no discurso é quando Cuarón fala de um processo de gentrificação do cinema.
Há algum tempo venho reparando um fenômeno nos cinemas de São Paulo (cidade onde moro e trabalho). Existe uma forte elitização nos cinemas espalhados por toda cidade, e mesmo em bairros periféricos, existe uma tendência quase excludente de separar o público carente que deseja apenas assistir à um filme do público regular de Shopping que vê no cinema um evento de final de semana.
Segundo dados do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual em 2017, o preço médio do ingresso no Brasil foi de R$ 15,00. Parece um preço razoável, porém segundo uma pesquisa de 2011 do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (a última divulgada pela instituição), São Paulo, uma das cidades mais custosas do país, tem um dos ingressos mais caros do mundo, superando os valores cobrados em Nova York, Tóquio e Paris. Na época, as entradas das salas paulistanas mais “exclusivas” chegavam a custar 58 reais, que corresponde a 8% do salário mínimo da época.
Hoje por exemplo, caso queira assistir ao filme “Aquaman” em IMAX você desembolsará R$ 71,40.
Mas você tem outras opções como cinemas convencionais, sem IMAX, XD, MEGAXBLUSTERDIABOAQUATRO, onde poderá pagar R$ 31,00 à noite. Ou seja, 3,10% do salário minimo atual para ver um filme dublado (esse cinema só oferece filmes nessas condições) na sala mais simples possível. Isso se não somarmos estacionamento e condução, afinal esse cinema ainda que esteja numa região periférica ele está a 35 km do extremo sul de São Paulo.
Ainda que haja algumas salas na cidade que fiquem fora de grandes Shoppings, isso é a raridade pois o normal em grandes metrópoles são salas dentro de um grande centro comercial circunvizinhada por lojas de grife. Agora tente imaginar uma família com 4 membros indo ao cinema ver um filme como “Wi-Fi Ralph” em 3D tendo que pagar por 4 ingressos, estacionamento e possível consumo interno.
Mas podemos explorar mais o que Cuarón quis dizer. Digamos que esse pai ou essa mãe seja uma cinéfila apaixonada por cinema e precise escolher 1 filme no mês para assistir pois isso é o que suas condições permitem. Qual a chance desse filme selecionado ser “Roma” e ele estar entre os filmes exibidos em um cinema de Shopping que só exibe filmes dublados? Poucas ou nenhuma.
Pegue o exemplo do filme “Ponto Cego” (Blindspotting) que para mim foi um dos melhores filmes de 2018. O filme fala sobre uma população abandonada pelo poder público e só foi exibido em cinemas frequentados pela elite paulistana. Com “Roma” seria a mesma coisa. Seria um filme que seria apreciado por uma elite que tem acesso às melhores salas de cinema podendo escolher o filme que verá dentre um menu com diversas opções. Privilégios para os que já são privilegiados e é ai que surge a gentrificação do cinema que exclui as pessoas com menor poder aquisitivo tornando o cinema programa nobre selecionado para alguns.
O que “Roma” e a Netflix conseguiram foi trazer para a sala de cinema, um público cinéfilo que não abre mão da experiência de se ver uma obra dessas na tela grande, porém não excluiu do seu radar outra parcela de apaixonados por cinema, a maior diga-se de passagem, que puderam apreciar essa obra tão impactante em suas casas. E não há discurso de “meu filme TEM que ser visto no cinema” (estou falando com vocês, Nolan e Cameron) que justifique essa gentrificação. Filme tem que ser visto. Ponto. Se possível claro, no cinema onde a experiência é diferente, mas isso excluiria muitas pessoas. “Roma” até a data da publicação desse artigo, está sendo exibido, inclusive com sessões especiais em cidades do norte e nordeste que não costumam receber lançamentos fora do circuito de blockbusters. Isso é importante demais!
Lembro-me que antes do lançamento do filme, muitos se lamentarem pelo fato de não poderem ver o filme no cinema. Preocupação até válida, porém a Netflix fez algo inimaginável aqui em São Paulo que foi exibi-lo gratuitamente durante 2 semanas com sessões lotadas. Em outros países fizeram experiências similares. Naturalmente a empresa fará uma avaliação para analisar o retorno do projeto (ninguém dá nada de graça), porém a experiência parece ter dado certo e não seria surpresa que outras obras recebam o mesmo tratamento.
Em 2018 tivemos grandes diretores com filmes sendo lançadas diretamente na plataforma como o inglês Paul Greengrass, da série Bourne, que lançou na Netflix “22 de Julho”; os irmãos Joel e Ethan Coen, que estrearam “A Balada de Buster Scruggs”; o escocês David Mackenzie, de “A Qualquer Custo”, lançou “O Legítimo Rei”, com Chris Pine; a dinamarquesa Susanne Bier, ganhadora do Oscar por “Em um Mundo Melhor”, com a ficção científica “Bird Box”“; e ainda teremos o americano J.C. Chandor, de “Margin Call” e o excelente “O Ano Mais Violento”, que em março lançará “Triple Frontier”. Em 2019 com Martin Scorsese poderemos novamente compartilhar a experiência de ver uma obra de um gênio do cinema com cinéfilos que não dispõem de 3,10% do salário para assistir a um filme. A gentrificação do cinema ao que me parece é um caminho sem volta, mas não podemos fechar os olhos para a gentrificação da arte, dos filmes, da cultura. Filmes precisam ser vistos e exemplos como o de “Roma” precisam ser discutidos, aprimorados e aplicados. Cinema precisa ser para todos!