10 comentários sobre o filme Unicórnio
No dia 16 de agosto, o filme Unicórnio, do diretor Eduardo Nunes, foi exibido em Indaiatuba, no Cine Topázio, em uma sessão do projeto de parceria entre a Vitrine Filmes e Petrobrás. Após a exibição, ocorreu um debate com o diretor.
Para não tornar este texto muito complexo, decidi transcrever algumas falas do diretor aqui, de forma a elencar importantes comentários dele a respeito do filme.
1- Sobre a obra da Hilda Hilst, na qual o filme Unicórnio é baseado:
A obra da Hilda é de difícil adaptação. Se você pegar um livro dela e decidir adaptar, vai ver que ele não é um livro como uma história, mas construído nas palavras, porque a Hilda vem da poesia e todo esse trabalho anterior à prosa.
Então pegar algo e transportar para qualquer outro meio é esvaziar a original, e fazer algo que é menor do que quando foi concebido. E consciente disso, eu ainda assim insisti, porque pra mim a ligação afetiva é muito grande.
Tivemos muito cuidado de colocar nos créditos e mostrar que não é uma adaptação livremente inspirada. Houve uma leitura do livro, e a partir daquela leitura, e a partir da impressão daquela leitura, e antes de tudo como a obra me afetou. É uma forma de ser fiel com as minhas ideias.
2- Sobre a figura do pai no filme (e na obra da Hilda Hilst):
Em uma entrevista dada pela Hilda Hilst, ela diz que a obra dele não teve influência, mas tudo o que ela fez foi para o pai dela. Então já fica evidente a importância do pai dela. A parte branca do filme: os diálogos todos dali foram saindo do Unicórnio (conto). E são várias vozes simultâneas, às vezes você acha que são duas pessoas conversando, depois parece que é ela falando, às vezes parece que tem três, quatro, e o que eu fiz foi transpor esses diálogos para o diálogo da menina com o pai. Eu achava importante a presença do pai no filme. Porque eu acho que de alguma forma ele deveria estar ali.
No filme, a ideia final, se o pai existe ou não, se está ali ou não: essa presença é a mesma questão com Deus: um tema recorrente na obra da Hilda, como a natureza da morte, e Deus é aquela figura ausente e presente. Ela fica sempre conversando com Deus e nunca tem resposta.
3- Sobre a animação do “rato no muro”
Eu vejo o filme como uma história que a menina conta para o pai. Nas primeiras frases, ele pergunta “vamos começar por onde?”, e ela anuncia que vai contar uma história. A gente pode entender que toda aquela história da casa é a que ela conta para o pai. E ele conta no final que não queria a história fosse assim, e aí conta aquela história que é provavelmente a história dele. E tem a história do ratinho. Eu não podia tratar o ratinho da mesma forma que eu tratava a história que ela conta para ele. Eu acho que o pai tem uma visão infantilizada, e ele a trata como uma criança, e o ratinho traz essa questão da animação e essa coisa mais infantil, e que tinha que ser diferente das outras narrativas, uma outra abordagem.
4- Sobre as críticas do filme
Mesmo que você fale que não lê as críticas, acaba lendo as críticas rapidinho, vendo as estrelinhas, e algumas delas falam da relação entre os dois filmes [Unicórnio e Sudoeste, filme anterior de Eduardo], e isso para a gente que faz cinema é muito bonito, porque você percebe que está criando uma obra, por mais difícil que seja. Você está percebendo que alguns preferem o primeiro, e a Folha fala que o segundo é a evolução do primeiro.
O mais importante é você perceber que você acreditou em determinado tipo de cinema, você tenta ser fiel a ele e tenta usar esse cinema para se comunicar com as pessoas.
Eu sei que não é um filme fácil. É um filme com poucos diálogos, que passa 40 minutos apresentando os personagens, mas no momento em que a pessoa se propõe a se deixar levar, você vê que ela está preparada, no sentido de estar disposta a isso, pela questão da velocidade do mundo, pela forma como a gente já está induzido a imagens rápidas, a própria velocidade do mundo.
Eu sei que não é um cinema fácil mas é o que eu acredito, e mesmo que seja para poucos, acaba sendo especial.
5- Sobre o tempo de preparação de seus filmes
O primeiro filme eu levei 10 anos para fazer, captando e procurando recursos. Eu tinha um outro projeto que fiquei tentando por quatro anos e não consegui, e este [Unicórnio] eu consegui em dois anos.
6- Sobre o roteiro
Eu escrevo o roteiro todo errado. É um roteiro mais literário, eu descrevo o cheiro, mas eu acho que é importante para o diretor de arte. O roteiro é construído mais na forma literária d que como roteiro. E depois que eu escrevo eu faço o storyboard do filme inteiro. Eu mesmo faço, bem precário, e o diretor de arte brinca que a minha precariedade em desenhar cria um estilo de filmar. Eu faço bolinha de frente e de lado, então ele fala que eu nunca filmo em três quartos, porque eu vou seguindo o storyboard tão rigorosamente que eu filmo do jeito que sei desenhar.
7- Sobre a personagem Maria, a menina protagonista
Toda a parte da montanha é o Matamouros [conto da Hilda Hilst] e existe sim a relação de ciúme da mãe com a filha.
Sempre que eu vejo, eu fico impressionado com a Bárbara [atriz]. Eu acho ela muito boa. é a primeira vez que ela trabalha como atriz, ela é filha de dois grandes atores, que estão no filme. Acho que é muito difícil para um ator os silêncios: o olhar que ela faz, a forma como observa, os tempos que ela dá, no diálogo sobre como é morrer ela faz uns silêncios. E você percebe muito a sua visão do filme através dela. E aí tem todos os questionamentos: ela tá descobrindo a sexualidade dela, tem uma relação de ciúme, amor e ódio com a mãe, e a questão da falta de diálogo. Então toda a fonte de saber dela é da natureza. Ela sente o cheiro, tudo ali ela tenta aprender através disso. Essa descoberta de sexualidade se dá nesse contato, na ausência de conversa com a mãe, na ausência física do pai, e nesse contato com a natureza.
8- Sobre o Unicórnio
É engraçado que em um momento do filme tem a romã, e a gente encontrou aquela árvore que era muito bem localizada, sem nenhuma outra árvore próxima. Só que aquilo não é um pé de romã. E a gente pendurou a romã naquela árvore, e alguém disse que ‘aquilo não é um pé de romã’, e eu disse ‘gente, o filme tem um unicórnio’! E depois que você põe um unicórnio, você faz qualquer coisa.
Eu tô tentando entender também [o unicórnio]. Eu acho que é um pouco a menina. É a representação daquela menina na natureza. Toda vez que ela conversa com ele, ela diz que ele a entende, então ela tá tentando justificar algo que não é justificável. Acho que o Unicórnio é a representação dela mesma.
9- Sobre a razão de aspecto do filme
Isso provoca uma imersão maior do espectador. Você olha para cá e olha pra lá, e até a duração do plano fica mudada com a imagem. Se você tem o formato 4:3, o close toma toda a tela, e nesse caso você ocupa 1/4 da tela, e isso dá um equilíbrio e uma importância muito grande para o fundo. Toda a cor do filme foi feita quase manualmente, e em cada elemento ele foi pintando quase à mão, e a pós-produção durou sete meses.
A gente filmava nas montanhas e ela olhava para um lugar que era o lugar do filme. Então, mesmo o que não está na tela, o espaço interfere no olhar do ator. Quando a Patrícia está retirando o balde e olha, ela tá olhando para uma cadeia de montanhas, e mesmo que aquilo não seja visto na tela, ele tá nos atores.
Eu acredito muito no cinema onde o ambiente é forte. O David Lean, diretor que fez Lawrence da Arábia, Doutor Jivago, é um diretor super clássico, mas que consegue combinar grandes espaços com questões muito profundas dos personagens. No Lawrence da Arábia, é um personagem com uma questão masculina muito forte, e ele é gay, então você tem um close dele em uma paisagem gigantesca e você entende todos os conflitos, é muito difícil de fazer. Então a paisagem tem essa função de narrar a história. Eu acho que a gente tá acostumado a aceitar regras estabelecidas, então o filme tem que ter um roteiro com estrutura básica. OK. Mas um filme, antes de qualquer coisa, é som e imagem. Então para isso, antes de qualquer coisa, ele precisa narrar qualquer coisa em som e imagem, independente da história que ele conta. É claro que há uma história e tem personagens, mas se a gente trabalhar o som e a imagem de um jeito muito especial, você pode potencializar a forma de contar a história. E por vezes, eu gosto muito daquilo que eu citei: quando a imagem vai para o muro e tem uma fusão com a janela, aquilo ali é quase 2 minutos de música e uma fusão. O que é aquilo? É uma fusão. O que você está contando na história? Nada! Estou contando uma fusão. E aquilo ali é imagem, som e uma fusão. Só que é tão bonito.
10- Sobre Patrícia Pillar
Quando a gente estava pensando no elenco, vimos que a personagem tinha que ser uma mulher com 50 anos e muito bonita. Patrícia Pillar, claro, mas quando que ela ia fazer o nosso filme de baixo orçamento. A gente mandou o roteiro, tinha um contato, e ela leu e queria fazer de qualquer jeito. A gente nem tinha orçamento para o cachê dela. Então ela abriu mão de tudo o que ganharia para se tornar produtora do filme: ela é produtora associada. É o primeiro filme autoral dela.