Crítica | Uma Dobra No Tempo
Uma Dobra no Tempo e a eterna luta de realidade vs. fantasia
Ficha técnica:
Direção: Ava DuVernay
Roteiro: Jennifer Lee, Jeff Stockwell
Elenco: Oprah Winfrey, Reese Witherspoon, Mindy Kaling, Gugu Mbatha-Raw, Michael Peňa e apresentando Storm Reid com Zach Galifianakis e Chris Pine
Nacionalidade e lançamento: EUA, 2018 (29 de Março de 2018 no Brasil)
Sinopse: Os irmãos Meg (Storm Reid) e Charles (Deric McCabe) decidem reencontrar o pai (Chris Pine), um cientista que trabalha para o governo e está desaparecido desde que se envolveu em um misterioso projeto. Eles contarão com a ajuda do colega Calvin (Levi Miller) e de três excêntricas mulheres em uma ousada jornada por diferentes lugares do universo.
Antes da exibição deste Uma Dobra No Tempo (A Wrinkle In time, 2018) para a imprensa, a diretora Ava DuVernay aparece numa mensagem gravada. No vídeo, ela aponta que o filme foi feito para crianças de oito a doze anos, que é uma obra “feita para o fã”, para os atuais tempos difíceis, e clamando para assistirmos a esta obra com um olhar infantil. Desconfortável e em tom defensivo, a mensagem instaura – antes mesmo que o filme comece – uma áurea de desconfiança e vergonha alheia que parte de sua própria diretora. Se a mensagem será exibida antes das sessões para o público ou não, a verdade é que ela explicita um sintoma cada vez mais comum das grandes produções de estúdio da atualidade, que utilizam a velha desculpa do “feito para o fã” na intenção de se prevenir de críticas mais embasadas.
Adaptado do cultuado livro de mesmo nome escrito por Madeleine L’Engle, essa mais nova versão de Uma Dobra No Tempo gira em torno de Meg (Storm Reid) e seu irmão caçula Charles Wallace (Deric McCabe), que, quatro anos após o desaparecimento de seu pai (Chris Pine) – um renomado físico que trabalhava num misterioso projeto científico – ainda sentem o peso da partida inesperada. Quando recebem a visita de três seres celestiais – a Sra. Qual (Oprah Winfrey), Sra. Queé ( Reese Witherspoon) e Sra. Quem (Mindy Kaling), eles embarcam, acompanhados do colega Calvin (Levi Miller) em uma busca formidável, viajando através de uma dobra no tempo conhecida como “tessering”. Para voltar a Terra, Meg precisa enfrentar a escuridão dentro de si para derrotar o mal que está envolvendo o universo.
Ava DuVernay está longe de ser uma desconhecida. Com grandes obras sociais e políticas sob seus braços, a diretora possui uma indicação ao Oscar por seu documentário A 13ª Emenda (2016) – ainda que tenha sido excluída da indicação a melhor diretora por seu trabalho em Selma: Uma Luta Pela Igualdade (2014), indicado a melhor filme na época (e é certo acreditar que, se lançado no último ano, a diretora encabeçaria a lista) – e é publicamente vocal em relação as causas que defende. Com este último trabalho, um desafio: a adaptação de um livro querido por muitos, numa produção de grande orçamento incomparável ao de seus filmes anteriores, no maior estúdio da atualidade. Essa transição é sentida, numa obra onde a insegurança – ou melhor, o desconforto – por trás das câmeras em relação ao público alvo e até mesmo ao escopo técnico da produção é evidente a todo momento.
Vamos à montagem inicial, por exemplo. Nela, acompanhamos a infância de Meg, e sua terna relação com seu pai e sua mãe (Gugu Mbatha-Raw, apagada). Com uma estética de câmera na mão, desfoques frequentes com a proximidade dos atores e objetos em primeiro plano, a intenção de DuVernay e seu diretor de fotografia Tobias A. Schliessler (A Bela e A Fera, Dreamgirls), é a de atribuir intimidade aos momentos. A escolha é até a usual, mas em 3D se torna um verdadeiro pesadelo visual da desorientação, falhando do ponto de vista técnico e conceitual. Se os objetos em primeiro plano ajudariam a atribuir profundidade, o desfoque dos mesmos aliados a câmera inquieta prejudicam a compreensão do que se passa no quadro, e ao invés de aproximar aquelas pessoas de nós, somos apenas mais distanciados, já que a impressão é de estar acompanhando tudo aquilo por uma fresta embaçada. É o que nos leva ao erro de conceito e mais prejudicial a história: se a intenção é utilizar desses artifícios de linguagem para nos aproximar emocionalmente de seus personagens em pouco tempo, a falha de sua execução acaba por sabotar totalmente essa intenção de investimento, já que a última emoção que a relação carinhosa de Meg e seu pai deveria transmitir é confusão e desnorteio.
A sequência poderia funcionar vagamente nas cópias em 2D, mas levando em conta que este é um filme pensado na linguagem do 3D desde sua concepção, a culpa recai sobre os ombros de sua diretora, que, mesmo diante de obrigações de produtores para aderir ao formato (mirando, é claro, os preços mais elevados que os ingressos das salas IMAX proporcionam), deveria ter em mente as “limitações” da escolha. A opção do 3D é devida a imersão que os mundos fantásticos introduzidos aqui oferecem, e, uma vez que a viagem a essas terras é feita, a linguagem começa a funcionar graças aos cenários digitais que permitem maior eficiência da mesma.
Ainda assim, os maiores problemas de Uma Dobra no Tempo não são técnicos. O roteiro de Jennifer Lee (Frozen) e Jeff Stockwell (Ponte Para Terabítia) não perde tempo em estabelecer desde cedo a inadequação social de Meg (até mesmo por ser negra num ambiente escolar onde a beleza fabricada entre as mais novas começa a ser exigência – e essa talvez seja a melhor contribuição de DuVernay ao material de origem, mudando a etnia de sua protagonista) após o desaparecimento de seu pai. Ao invés de dinamismo, o que se tem aqui é a pura artificialidade, como a repetição excessiva de frases como “Desde que seu pai foi embora, você nunca mais foi a mesma!”. O filme pode ser intencionado para os mais novos, mas isso não é motivo para tratá-los como idiotas.
E escolhas como essas só prejudicam as mensagens da obra, que prega a inclusão, autoaceitação e o amor no mais puro sentido. Mensagens que, por virem de forma artificial, didática e gratuita perdem toda a eficiência – e o fato de serem embaladas por músicas pop que são bonitas, mas que apenas reiteram o texto em suas letras adiciona uma camada a mais de didatismo. Quando estamos nos mundos fantásticos, as celestiais Oprah Winfrey, Reese Witherspoon, Mindy Kaling e até mesmo um Zach Galifianakis afetado (e, se tratando do ator, reconheço que o adjetivo seja quase um pleonasmo) entram e saem de cena com frases de auto-ajuda barato e uma nova vestimenta excêntrica (e o apego ao brega e ao ridículo não é um problema, já que a história de contornos fabulescos até pede por isso).
Quando nem mesmo o visual computadorizado do mundo fantástico se salva (e isso diz muito de uma produção que – como dito no início – tem como público alvo os pequenos), com designs e paisagens pouco inventivas, encontra-se a eficiência justamente no que deveria ser o cerne emocional do filme: a relação de uma garotinha com seu pai – e tal sucesso deve-se ao carisma do sempre competente Chris Pine, que eleva o diálogo e suas cenas emocionais com a atriz Storm Reid. O irmão caçula Charles Wallace vivido por Deric McCabe é talentoso e consegue divertir como a estereotípica “criança inteligente demais para sua idade” pontualmente, mas nas cenas que carecem de um maior esforço dramático acaba comprometendo.
A memória que veio a mente na saída da sessão foi a do diretor Barry jenkins no Oscar 2017, quando subiu ao palco para receber o prêmio de melhor filme por Moonlight após o erro que havia premiado minutos antes LaLaLand. Emocionado e diante de uma clara divergência tonal que ambos os filmes coincidentemente possuíam – a cidade dos sonhos e estrelas de uma Los Angeles idealizada contra uma realidade periférica e preconceituosa -, o diretor proferiu: “Que se danem os sonhos, isso é real!”
Essa é a impressão que fica com as intenções de sua diretora e este mais novo trabalho, como se Ava fizesse suas obras mais viscerais não por escolha, mas por necessidade, por uma ânsia maior que o sonho do cinema visto aqui; não da realidade de Uma Dobra No Tempo, onde todos os males vêm de uma nuvem negra e malvada, mas talvez daqueles que vem do próprio ser humano. Se esta é uma visão cínica sobre uma cineasta que encara esta adaptação com sua própria parcela de cinismo – como se inconscientemente não conseguisse se desprender da realidade como tanto quer – talvez não fique claro, mas a resposta parece frequentemente contida na tela.
Resumo
Uma Dobra no Tempo possui mensagens relevantes e bonitas, mas se a entrega das mesmas é feita de forma didática e descompromissada, a catarse das mesmas perde peso.