A Viagem de Chihiro – A profundidade na narrativa de Hayo Miyazaki
A Viagem de Chihiro é uma famosa animação japonesa que ganhou os holofotes de Hollywood e, por consequência, do mundo, em 2003. O longa é produzido pelo Studio Ghibli, que tem no catálogo outras memoráveis produções como O Castelo Animado e Princesa Mononoke. Todas, obras que tiveram a condução do diretor Hayao Miyazaki, co-fundador do estúdio. O interessante de seu trabalho é como conduz as personagens e seus universos, todos enraizados na cultura japonesa em seu mais profundo nível. Assim como a feminilidade das suas mulheres, retratadas (oram vejam só) como seres humanos reais. Por isso é fundamental quando olhamos suas animações, tentar destrinchar o que seus símbolos carregam nas entrelinhas. Bora?
A história da animação fala sobre uma menina chamada Chihiro, que está de mudança para outra cidade e, como toda criança, não aceita o fato de ter que deixar os amigos para trás. Durante a viagem de carro, os pais resolvem seguir um atalho e acabam chegando em outra cidade, vazia, porém com uma enorme quantidade de barracas de comida. Aproveitam para descansar, mas Chihiro fica com um pé atrás da situação e acaba não consumindo nada. Ao explorar a cidade, encontra com um menino, o Haku, que pede para ela ir embora. Nesse meio tempo a noite cai aos poucos e seres estranhos começam a aparecer na cidade. Esses seres não são exatamente espíritos, mas vivem nessa “segunda dimensão” e não toleram humanos.
Chihiro vai atrás de seus pais, mas nesse momento já tinham se transformado em porcos. Então, na última tentativa de escapar, um rio apareceu no caminho até a entrada onde está estacionado e carro. A menina e seus pais porcos, ficam presos nessa cidade. Então, Haku, decide ajudá-la, pois os dois tem uma forte ligação que não sabem explicar. Por isso, a menina fica na cidade, tentando se infiltrar nesse mundo diferente e salvar seus pais.
Um grande acontecimento que decifra essa caminhada da menina é quando assina um contrato de emprego e em troca entrega seu nome. Como já dizia Jostein Gaarder, em O Mundo de Sofia, quem é você? se trocassem o seu nome, quem seria? E esse é um dos fatores que guiam a aventura, quem é Chihiro? Ou melhor, quem ela pode ser, depois que passar por esses obstáculos?
Toda a aventura que ela vive é uma forma de mostrar como acontece o crescimento e amadurecimento. Os obstáculos que ela enfrenta é o mesmo que qualquer adolescente passa, como ser aceito em um mundo que não conhece, como ser aprovado pelos seres que dominam o ambiente (lê-se adultos), como enfrentar os sentimentos de distanciamento dos pais, assim como, o primeiro amor. Mas as mudanças na personalidade e no jeito de encarar as situações se transformam de maneira sutil e em escala.
Com toda essa comparação com uma das fases mais difíceis da vida, que é a adolescência, a animação deixa claro um ponto: como as memórias que criamos são importantes no nosso crescimento.
O que também nos remete ao que é a cultura japonesa, que foi infiltrada pela norte americana, pós-segunda guerra, e ainda enfrenta dificuldades em se manter firme e inesquecível em seu próprio país. Os deuses nipônicos são expressões de como nos relacionamos com a natureza, a sociedade e o ambiente a nossa volta. O que faz muito sentido um deus ser infectado no mundo humano e, portanto, representado com lama e sujeira, até uma alma boa e inocente limpá-lo. Mas também necessitam de memória para existir e se manter livre. Assim como Haku, que não tem memória de quem é e precisa de ajuda para se libertar de Yubaba. Ou seja, vê-se em uma armadilha e a única maneira de sobreviver é entregar-se à ela, assim como a cultura japonesa.
A maldição de Haku é a metáfora dos valores assassinados, em forma de dragão, e a palavra “Kamikakushi” é a associação ao folclore japonês, que significa morte social. Então, o personagem precisa voltar ao mundo para reconstruir sua personalidade e ressuscitar perante a sociedade. O mesmo que o Japão perante sua cultura e raízes.
A própria cidade que Chihiro fica presa nos remete a sociedade, cada um tem uma função social, como a Yubaba, que é quem comanda as tarefas e o sapo que coordena. Além, claro das Yunas, servas que trabalham limpando e lavando os deuses. O que nos remete às casas de banho japonesas, que antigamente também serviam como casas de prostituição (não generalizando, claro). Por isso, o termo Yuna é usado para designar as ajudantes dos sapos. E, até mesmo, o pedido de mudança de nome de Chihiro, por Sen, nos lembra a mudança de nome das strippers.
A Viagem de Chihiro tem várias camadas que podem ser reveladas com um pouco mais de atenção. Isso tudo, claro, nos remetendo as descobertas da adolescência, ou seja, o crescimento e desenvolvimento da personalidade, sexualidade, inteligência e ideais. Além de encaixar em um olhar formidável sobre a sociedade, comparando humanos e o capitalismo, no qual o dinheiro compra tudo, com porcos. E todas essas fatias são recheadas com misticismo e outros elementos da cultura japonesa, que Hayao sempre demonstra em suas animações, que tem necessidade de ser resgatada e salva, assim como a natureza.
O último assunto deste texto será dedicado ao personagem mais icônico e representativo, o Sem Face (Sem Rosto ou No Face). Essa criatura chega de surpresa na casa de banho, sua função é vagar sem rumo e absorver o que lhe dão. É exatamente isso que uma criança faz. Uma alma inocente vaga pela sociedade e absorve, aprende e desenvolve o que é lhe dado. Por isso, quando está perto do sapo, torna-se ganancioso e guloso, já perto de Chihiro, prestativo e carinhoso. E mesmo com uma lavagem, acaba com resquícios do que aprendeu anteriormente. O Sem Rosto na verdade representa cada um de nós, que vaga pelas instituições, escola, família, trabalho, amigos. Absorve e se constrói, às vezes mergulhados em um mundo, acabamos sem identidade, por isso: sem rosto. Mas se enfrentamos as dificuldades e nos fortalecemos, somos salvos, igual a Chihiro.
Muitas lições são ensinadas e reveladas nesse longa sensível e repleto de detalhes. Chihiro é uma das mulheres mais fortes de Hayao, que sempre as retrata de maneira sutil e realista. Várias vezes o diretor foi questionado sobre como consegue adentrar o universo feminino e representá-las tão bem. Fortes, destemidas, curiosas, com uma personalidade completa, não só destacando uma ação ou ímpeto, mas completas por si só.