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Crítica: O Homem Elefante (1980)

Ficha técnica:

Direção: David Lynch

Elenco: Anthony Hopkins, John Hurt, Anne Bancroft, John Gielgud, Wendy Hiller, Freddie Jones, Hannah Gordon

Nacionalidade e data de estreia: Estados Unidos, 2 de outubro de 1980

Sinopse:

O drama do inglês John Merrick, uma pessoa que, na segunda metade do século 19,  nasceu com uma terrível deformidade em grande parte de seu corpo. Explorado por homens sem escrúpulos, Merrick vê em um renomado doutor a chance de viver de forma digna e respeitosa.

Um drama de um grande homem

O grande público conhece o diretor David Lynch de obras quase inteiramente compostas de temas bizarros, como é o caso de “Eraserhead” (1977), “Veludo Azul” (1986), “Coração Selvagem” (1990), “A Estrada Perdida” (1997) e “Cidade dos Sonhos” (2001). Filmes que desafiam a lógica do bom entendimento, criando um universo complexo e por vezes ilógico. É de se admirar no entanto que o melhor filme de Lynch seja algo diferente do tipo de cinema que ele criou. Me refiro à “O Homem Elefante”, uma das obras mais tristes e reflexivas já criadas pelo cinema.

“O Homem Elefante” conta a história real de Joseph Merrick (ou John, como é chamado no filme), jovem inglês que nasceu com uma grande deformidade em seu corpo. O excelente John Hurt ganhou o BAFTA de melhor ator e concorreu ao Oscar e Globo de Ouro na mesma categoria por sua surpreendente e excepcional interpretação no papel de Merrick. O ator está irreconhecível debaixo de uma grande camada de (e muito convincente) maquiagem; e o que ajuda a tornar sua atuação tão inesquecível são os trejeitos e a mudança de voz (os olhos expressivos de um ator também ajudam muito).

A obra começa com uma alegoria, mostrando a mãe de Merrick sendo violentada por elefantes, e consequentemente depois disso ela daria a luz a uma criança com traços de um elefante, em uma conotação ao que se chama de elefantíase (a doença de Merrick). O filme não relata o que aconteceu com Merrick quando criança, nos mostrando ele já depois dos vinte anos de idade, sendo explorado como aberração circense por um homem chamado Bytes (Freddie Jones). Os “shows” chamam a atenção do médico “Frederick Treves (Anthony Hopkins), especialista em anatomia humana.

Olhando Merrick pela primeira vez (essa cena é de cortar o coração), Treves se dá conta de que o lugar do jovem explorado não é ali, mas sob cuidados médicos em um hospital. Internado (e morando) em um quarto, Merrick recebe todo o amparo que necessita. O que vem a seguir é o acontecimento mais importante de toda a sua vida, mostrando que aquele homem que tanto sofreu desde seu nascimento é uma pessoa digna, educada, culta, inteligente e agradecida por tudo que lhe fazem.

De início, até as enfermeiras mostravam aversão à aparência de Merrick, mas com o passar do tempo elas são conquistadas por seu cavalheirismo, vindo a tornar-se o hóspede mais ilustre do local, recebendo a atenção da ranzinza enfermeira-chefe (Wendy Hiller) e do diretor (John Gielgud), além de conquistar as atenções da Sra. Kendal (Anne Bancroft), uma famosa atriz da época. Porém, as atitudes de um inescrupuloso guarda prejudicam a nova vida de Merrick.

Lynch filma tudo em um belíssimo preto e branco (a fotografia é de Fredie Francis), nos deixando atento ao fato de que o personagem principal é uma pessoa bastante meticulosa. Repare na maneira como Merrick serve um chá para seus convidados; como ele reage a elogios; e principalmente como ele recria em maquete uma catedral que só consegue ver parcialmente pela janela de seu quarto. O diretor evita tramas paralelas e subtramas, centrando-se exclusivamente no drama de Merrick e em como sua vida acaba impactando a vida do doutor Treves (que em determinado momento é colocado a refletir sobre suas atitudes).

“O Homem Elefante” não é um filme feito para fazer chorar; ele foge dessa fórmula fácil. No entanto, é impossível conter a emoção quando vemos uma pessoa digna e tão humana ser vista e julgada por sua aparência. Às vezes o próprio Merrick não se dá conta de seu estado físico, mas em determinado momento, ao se ver perseguido por várias pessoas em um navio, ele faz um grande e emocionante desabafo:

Não! Eu não sou um elefante! Eu não sou um animal! Eu sou um ser humano! Eu sou um homem.

Dois bons exemplos de pessoas com deformações físicas mostradas pelo cinema moderno são: “Marcas do Destino” (1986. Direção de Peter Bogdanovich. Estrelado por Eric Stoltz, Cher e Sam Elliott), em que um jovem com uma deformação no rosto é vítima do preconceito de colegas. História semelhante foi vista no recente “Extraordinário” (2017. Direção de Stephen Chbosky. Estrelado por Jacob Tremblay, Julia Roberts e Owen WIlson), em que um garoto precisa lidar com o preconceito, para vencer as barreiras que a vida lhe impõe. São filmes que nos mostram o quanto o ser humano pode ser desprezível ao ponto de julgar as pessoas por sua aparência física.

Mas o drama de Merrick vai além do preconceito, porque aqui seus problemas são bem maiores. Se nos dois exemplos acima, os personagens podem contar com o apoio de suas famílias, em “O Homem Elefante” só resta a Merrick conseguir ser aceito por pelo menos uma alma viva que lhe respeite, dando-lhe alguma dignidade, tirando-lhe do cerco das humilhações e constrangimentos (ajuda que ele encontra, como já vimos, na figura do doutor Treves e sua equipe, além da atriz que lhe considera bastante).

O filme nos dá fortes e dolorosas lições, e uma delas é a de que, através do preconceito, muitas pessoas deixam de enxergar a verdadeira essência de seu próximo. Não aceitar Merrick como um ser humano é não aceitar a bondade, o respeito e se privar de uma ótima companhia. Um drama tão forte que fala sobre intolerância acaba sendo também um sopro de esperança por nos mostrar que a aceitação e o acolhimento também são possíveis.

O ator, diretor e produtor (de filmes cômicos) Mel Brooks foi um dos produtores de “O Homem Elefante”, mas preferiu não colocar seu nome nos créditos para não confundir o público que poderia achar tratar-se de uma comédia, sendo que muita gente até já havia visto um espetáculo na Broadway sobre o drama de Merrick. Brooks era casado com a ótima Bancroft, uma das personagens femininas principais da obra. Aliás, o ótimo elenco é mais uma grande qualidade do filme.

Se o drama de “O Homem Elefante” não nos remete tanto ao que o diretor Lynch fez posteriormente, podemos observar no entanto que um pouco de sua filmografia futura reside de forma ainda que discreta no drama de Merrick, em particular nas invasões ao seu quarto por pessoas que, lideradas pelo guarda, invadem seus aposentos para vê-lo, e ali se embriagarem em um grande circo de horrores, onde os verdadeiros monstros são os intrusos. Outra passagem que nos lembra o Lynch de filmes posteriores é quando os artistas de um circo ajudam Merrick a fugir. Mas, longe do bizarro, tais cenas incomodam mais do que propriamente chocam.

A obra foi indicada a 8 Oscars: Filme, Direção, Ator (Hurt), Roteiro Adaptado, Direção de Arte, Figurino, Trilha Sonora e Edição, mas absurdamente não venceu nenhum prêmio. No mesmo ano, o também excelente “Touro Indomável” (de Martin Scorsese) perdeu os prêmios de filme e direção, que foram para “Gente Como a Gente (Dirigido por Robert Redford). Uma das maiores injustiças da Academia em todos os tempos.

John Merrick viveu na mesma época e na mesma cidade onde também vivia Jack, o Estripador. Assim, na famosa e polêmica HQ intitulada “Do Inferno”, o escritor Alan Moore – que recorreu a vários documentos e registros para criar sua história – introduziu Merrick em sua vasta galeria de personagens. A história da HQ gira em torno da origem e dos atos violentos do famoso assassino inglês que aterrorizou muita gente.

“O Homem Elefante” é uma lição de vida, um verdadeiro estudo do comportamento humano, mostrando o que as pessoas podem apresentar de melhor ou de pior. O final triste nos reacende uma velha questão moral: o quanto poderíamos agradecer (e nem sempre o fazemos) por estarmos vivos e não passarmos pelo o mesmo e terrível drama de pessoas como John Merrick.

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