A Metalinguagem de “A Forma da Água”
A palavra metalinguagem pode até parecer algo muito complicado de se entender, mas a realidade é que a metalinguagem está mais presente nas nossas vidas do que imaginamos. A definição básica de metalinguagem é que ela consiste em um tipo de linguagem que se refere diretamente a própria linguagem. Uma forma simples de entender a metalinguagem é usarmos como exemplo o dicionário. Essa compilação de unidades léxicas de uma língua é um exemplo de metalinguagem, pois tem o propósito de descrever e falar sobre os códigos que compõem a linguagem em si. Ou seja, é a linguagem falando de si própria. Nesse sentido, “A Forma da Água”, novo filme de Guillermo Del Toro é uma obra que exala metalinguagem na sua essência.
Apesar deste artigo não conter grandes spoilers, lê-lo sem ter visto o filme não surtirá o efeito desejado por este que vos escreve, pois citarei algumas cenas bem especificas para explorar a metalinguagem constante na obra. Mas no caso de você não ter visto o filme ainda, pare seja lá o que esteja fazendo e vá vê-lo. Ou leia esse texto e vá vê-lo na sequência.
Mas antes de falarmos especificamente de “A Forma da Água” é preciso falar da mente por trás do filme, ou melhor dizendo, do coração por trás dessa obra: Guilhermo Del Toro. O diretor mexicano sempre se identificou com monstros devido uma infância difícil. Segundo o diretor, sua aparência estranha fez com que ele se identificasse com figuras monstruosas, sendo muitas vezes representadas em suas obras como o reflexo de sua vida. Em “A Forma da Água”, Del Toro utiliza a figura da jovem Elisa como esta representação do que ele fora na infância; alguém deslocado com sua “estranheza” (no caso de Elisa, sua mudez) que se sente atraída por um ser monstruoso. Ademais, assim que essa identificação é estremada, Elisa sente a necessidade de se comunicar com este ser. Em diversas entrevistas, Del Toro diz que sua comunicação com suas criaturas se dava por meio dos desenhos que criava, dos filmes que via e dos livros e quadrinhos que lia. Da mesma forma, Elisa via nos filmes (os clássico da época pois o filme se passa nos anos 60) o seu refugo. Entretanto, este refugo não lhe era suficiente para fugir daquele realidade opressora. Entretanto, ao conhecer o monstro anfíbio, Elisa se conecta automaticamente, mas ainda não consegue estabelecer uma comunicação com o mesmo. Como ela resolve esse problema?
Música que se comunica com personagens.
A música em “A Forma da Água” tem uma função muito importante na história, pois se Elisa sendo muda não consegue se comunicar com o monstro, a música cumpre esse papel. Repare na cena onde Elisa resolve criar uma comunicação com o ser desconhecido. Ela utiliza-se de uma vitrola para que a música crie a conexão, algo muito recorrente no cinema mudo que muito influenciou o diretor amante dos grandes clássicos. Essa referência à esses clássicos do cinema mudo é muito condigna pois a própria Sally Hawkins que interpreta a Elisa, estudou profundamente as atuações de Charles Chaplin, Stan Laurel, Oliver Hardy e Buster Keaton para compor sua personagem.
Além disso, a trilha sonora de Alexandre Desplat tem a importante função de ambientar o filme nos anos 60 e referenciar esses clássicos do cinema. Adicionalmente, a música, em especial as que referenciam os clássicos musicais tem a função externar os sentimentos dos personagens. Novamente Elisa utiliza-se da música (no caso especifico mesclado à dança) para se comunicar. Na cena onde ela se senta ao lado de Giles (Richard Jenkins) a forma de expressar que ambos estão sintonizados na triste situação excludente, mas ainda sim esperançosa que se encontram é por reproduzir os passos dos filmes que ambos então assistindo na TV. Desta forma, Del Toro cria mais uma camada metalinguística na sua obra:
Referências à grandes obras, inclusive à suas.
Não é segredo para ninguém que “A Forma da Água” é uma referência explicita ao clássico dos anos 50 chamado “O Monstro da Lagoa Negra”. Neste clássico, uma expedição arqueológica viaja até a floresta amazônica para investigar vestígios do que pode ser uma anomalia genética ou um estranho ser pré-histórico. Del Toro ao mostrar no filme que o anfíbio também viera de uma floresta amazônica reforça essa referência quase que colocando os dois filmes no mesmo universo cinematográfico.
Mas Del Toro não apenas referencia clássicos de outrora, mas também suas próprias obras, como por exemplo, “O Labirinto do Fauno” que é referenciado na figura do capitão Strickland (Michael Shannon) que claramente emula o capitão Vidal do filme de 2006. As semelhanças vão além do antagonismo, pois em ambos os casos o desenvolvimento dos personagens que se revelam verdadeiramente os monstros (no mau sentido) da história é apresentado tanto nas atitudes quanto no visual de ambos. Em “O Labirinto do Fauno”, Vidal tem seu rosto desfigurado remetendo-o à uma figura monstruosa, deformada, grotesca, o que externa seu interior. Em “A Forma da Água”, Strickland tem os dedos arrancados e recolocados, mas isso acaba gerando uma infecção que apodrece sua mão. Simbolicamente, as mãos representam as ações de determinada pessoa, ou seja, Strickland agia de forma podre, estragada, revelando o que ele realmente era por dentro – um monstro.
Esse fascínio de Guillermo Del Toro por monstros e por cinema, faz de “A Forma da Água” uma obra de coração aberto. Um filme que fala de cinema, de amor, de empatia e de empoderamento. Uma obra intimista de um dos grandes diretores de sua geração.
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