Três personagens de um Brasil
Uma nação é retratada através de suas personagens, ou não? Como se pode dizer “isso é a cara do Brasil” (ou outro país qualquer)? Tomando esse tema como ponto de partida, tanto Jeca Tatu, quanto Pedro Malasartes e Macunaíma são ditos e vistos como estereótipos do povo brasileiro.
Foi a partir do século XIX, que a produção literária brasileira e a de saber científico, começou a buscar as origens, as características e o sentido da formação nacional que ainda dava os seus primeiros passos como coletividade e território.
Nossa cordialidade embasada nos moldes da colonização portuguesa e enfraquecida com o processo de urbanização pelo qual passamos, deu a nós, brasileiros, uma outra via: as relações pessoais de favorecimento que isentam os brasileiros das faltas cometidas.
Ou seja, se as leis são criadas para regular condutas sociais através de normas e todos devem respeitá-las e segui-las, os brasileiros, entretanto, ou uma boa parte deles, burla essas normas.
Assim o famoso “jeitinho brasileiro” é uma certa acomodação em situações conflituosas que transcorre as entrelinhas da Lei, como uma solução em situações de impasse com a famosa frase “a gente não pode dar um jeitinho?”.
Jeitinho esse que requer astúcia e malandragem, que está em burlar as leis para se conseguir o que se quer numa relação de poder e autoridade. Deste modo fica claro que o favorecimento particular, sobrepõe-se as normas gerais.
Aparece desta maneira, para nós o malandro, uma personagem nacional, um profissional da arte do jeitinho, que se vale de artifícios pessoais criativos, de histórias e de certos expedientes para tirar vantagem da situação complicada, valendo-se de astúcia ou da desonestidade.
Dentro da história da literatura temos o Pícaro, que é uma personagem-tipo dos romances e novelas dos séculos XVII e XVIII, surgidos na Espanha, com características daquilo que hoje chama-se malandragem. O pícaro vivia de expedientes, transitando entre as várias classes sociais, das quais tirava seu sustento, enganando por ciladas. Noutras, adquire também o papel de bufão.
Temos então nossas duas primeiras personagens Macunaíma e Malasartes como arquétipos da malandragem, este último ainda consegue superar a situação de exploração econômica e política em que vive, tirando proveito dela.
O nome pode ser escrito: Pedro Malasartes, Malazartes, ou das Malasartes. Pedro Malasartes é figura tradicional importada com o colonizador já que aparece nos contos populares da Península Ibérica, como exemplo de burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável de expedientes e de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos.
Ficou bem conhecido e se tornou um personagem tradicional da cultura portuguesa e, posteriormente, da cultura brasileira. Essa figura era um exemplo da esperteza, da inteligência, da criatividade, mas não se sentia nenhum pouco culpado em usar a mentira e enganar as outras pessoas em proveito próprio.
A personagem chegou ao cinema em As Aventuras de Pedro Malasartes, de 1960, direção de Amácio Mazzaropi, roteiro de Marcos César e Galileu Garcia. Com o próprio Mazzaropi no papel principal, mais Geny Prado, Nena Viana, Benedito Liendo, Genésio Arruda etc.
Em agosto de 2017, foi lançado Malasartes e o Duelo com a Morte, escrito e dirigido e escrito por Paulo Morelli, tendo no elenco Jesuíta Barbosa (como Malasartes), Isis Valverde, Leandro Hassum, Vera Holtz, Julio Andrade (como a Morte), etc. Foi transformado em minissérie de três capítulos exibido pela Rede Globo em dezembro de 2017.
A personagem é apropriada para o momento brasileiro, já que é em meio a espertezas de todos os tipos que parecemos existir atualmente que a personagem transita, vive, dá seus golpes, sobrevive e encanta também.
A ausência de caráter do brasileiro aparece magistralmente caricaturada em Macunaíma. A personagem reapresenta toda a riqueza e a plasticidade do nosso caráter na junção de 3 raças (caucasiano, indígena e afrodescendente) ironicamente consideradas “malditas”, cristalizando um estigma de baixa estima que tem marcado a personalidade brasileira, bem como a malandragem ou o jeitinho brasileiro. O herói apresenta um estereótipo do brasileiro.
Macunaíma, personagem criada pelo escritor Mario de Andrade, em 1928, é fruto de seus estudos sobre mitos e lendas indígenas bem como de seu folclore. A narrativa de caráter mítico procura fazer um retrato do povo brasileiro através de seu “herói sem caráter”.
A adaptação da obra para o cinema ocorreu em 1969, com o então título em Macunaíma, o herói sem caráter. Uma comédia com roteiro e direção de Joaquim Pedro de Andrade, tendo no elenco Grande Otelo, como o protagonista, Paulo José, Jardel Filho, Milton Gonçalves, Dinah Sfat, Hugo Carvana, entre outros.
Ao contrário do livro, no filme o protagonista não tem poderes mágicos, mesmo assim, representa o típico brasileiro, que acaba sendo devorado pelo sistema, a história do brasileiro que foi comido pelo Brasil, isto é, pelas relações de trabalho, pelas relações sociais e econômicas, um filme sobre consumo. Ainda atual e contemporâneo com nossa realidade.
Das nossas caricaturas, a personagem Jeca Tatu não se enquadra no gênero pícaro. Ela apresenta-se como o preguiçoso, sonso e moroso caipira do interior que não quer preocupação com a vida social e econômica, querendo somente a leseira e o sossego. Vivendo de sua roça mas sem esforçar-se por torná-la produtiva para o seu próprio sustento.
No início do sec. XX, urgia entender e explicar o Brasil e o seu povo, desvendar as suas origens, os seus dilemas e as suas peculiaridades culturais, étnicas, políticas etc., uma ordem de preocupações comum a todas as sociedades que, sob o influxo do capitalismo, organizavam-se sob a forma do Estado Nacional.
Distanciando-se das tradicionais abordagens, a construção e apresentação de Jeca Tatu, personagem criada por Monteiro Lobato em sua obra Urupês, baseadas no trabalhador rural paulista, simboliza a situação do caipira brasileiro, abandonado pelos poderes públicos às doenças, ao atraso econômico, educacional e à indigência política. Como, praticamente, estamos hoje.
O filme Jeca Tatu é uma cómedia de 1959, escrito e dirigido por Milton Amaral e estrelado por Amâncio Mazzaropi. Apresenta com delicada sutileza, a diversidade cultural brasileira, bem como os regionalismos e as manifestações culturais através dos trejeitos gestuais, do cenário, do figurino e, em especial, pelos diálogos travados entre as personagens, que ressaltam questões importantes da época.
Assim, podemos considerar que essas personagens vistas como agentes sociais elaboram suas identidades a partir das relações cotidianas com os grupos sociais em que participam e interagem coletivamente, podendo, portanto, participar de distintas e múltiplas identidades culturais, que podem, ou não, estar atrelados ao seu papel social na realidade brasileira.
O cinema é uma manifestação cultural ligada às mudanças da sociedade. Ele traduz uma realidade humana característica do fenômeno geral de urbanização de uma nação. Ele é uma herança cultural a ser fixada e além de informar e entreter, o cinema tem também o papel estratégico de disseminar e afirmar as identidades culturais, carregando em si a visão da cultura que lhe deu origem: nesse caso o cinema nacional brasileiro.
Talvez isso possa ser explicado pelo fato de o Brasil continuar a ser o problema principal a ser discutido, ou o enigma a ser decifrado, pelos sociólogos, no seu “jeitinho” de malandro e de sossegado.
E essa nossa realidade e nosso “jeitinho” é exposto pela sétima arte, por isso, as representações culturais criadas por essas personagens e filmes contribuem para formar e mostrar a identidade nacional da nossa sociedade.