CRÍTICA | Assassinato no Expresso do Oriente (1974)
Aproveitando a estreia de Assassinato no Expresso do Oriente, nova adaptação do romance homônimo de Agatha Cristie, dirigida por Kenneth Branagh, resolvi fazer uma crítica sobre o primeiro filme a levar para as telonas o popular livro.
No texto não há duas coisas: spoilers e nem comparações com o novo filme. Se quiser saber mais sobre a nova adaptação, basta clicar no link a seguir: ASSASSINATO NO EXPRESSO DO ORIENTE (2017) – CRÍTICA.
Então vamos lá! Bom filme e boa leitura! E não se esqueça de comentar, curtir e compartilhar o texto!
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Existe um charme nos filmes mais antigos, ainda mais na mão de grandes diretores, que parece impossível de replicar. Exemplo disso é o clássico Assassinato no Expresso do Oriente, dirigido pelo talentoso Sidney Lumet. A áurea que Lumet habilmente preenche o filme já começa nos créditos. Um formato datado, é verdade, mas elegante, assim como a obra.
Um preâmbulo abre a adaptação. Uma história prévia que serve como alicerce narrativo para o desenvolvimento posterior da trama e de seus personagens. Na sequência, nenhuma fala é dita. Apenas fotos e manchetes de jornais intercalam-se para narrar um fato diegético. Nas mãos de Lumet e da editora Anne V. Coates (responsável pela montagem de outros clássicos como Lawrence da Arábia, de1962, e O Homem Elefante, de 1980), o prólogo possui dinamicidade e peso dramático.
É 1935. O famoso detetive belga Hercule Poirot (Albert Finney) está prestes a se hospedar num hotel da Turquia quando um telegrama lhe é entregue na recepção. A mensagem requisitava que ele retornasse com urgência à Londres. Às pressas, Poirot recebe a ajuda de Bianchi (Martin Balsam), grande amigo seu e diretor da Compagnie Internationale des Wagons-Lits, dona do luxuoso Expresso do Oriente. Graças à Bianchi, Poirot consegue um lugar no trem inexplicavelmente lotado. Após conturbada madrugada, Poirot acorda e descobre que um dos passageiros fora brutalmente assassinado. Resta ao detetive descobrir o assassino no trem onde todos são suspeitos.
Todo primeiro arco de Assassinato no Expresso do Oriente é voltado à apresentação e elaboração dos variados personagens, principalmente através da sequência do embarque. Nela, somos apresentados às respectivas personalidades de cada um. Lumet, um dos mestres do “show, don’t tell”, elabora cada personagem por suas reações ao interagirem com pedintes, vendedores ambulantes e transeuntes alheios enquanto embarcam no trem.
A sequência também possui outro mérito. É a partir dela que Lumet desenvolve a limitação de espaço do Expresso do Oriente. O plano aberto capta a movimentação dos atores e extras na amplitude da plataforma. Apesar de cheia, há espaço para ir e vir. Mas quando ela posiciona-se dentro do veículo, os planos se fecham, convertem-se, principalmente, em primeiros planos. Aos poucos, Lumet vai delimitando o espaço de cada personagem (e por consequência, do espectador). Os corredores estreitos e cabines apertadas fazem-se sentir, resultando numa sensação de confinamento durante os momentos necessários.
Através do espaço físico do trem, Lumet conduz o espectador com uma investigaçãoinstigante. Para isso, o diretor contou com um elenco formidável, composto por nomes grandiosos como Lauren Bacall, Ingrid Bergman, Sean Connery e Anthony Perkins, dentre outros. Cada personagem é bem trabalhado pela respectivas atrizes e atores. Uma variedade de diferentes interpretações dão vida a curiosas personalidades. Individualmente, cada uma delas consegue cativar de alguma maneira, seja pela qualidade cênica, seja pelo roteiro. E no relacionamento coletivo, cada grupo conquista mérito semelhante. Mas entre as grandes atuações, uma se destaca.
O Hercule Poirot de Albert Finney é completamente cativante. O veterano ator (à época, não tão veterano assim) elabora um personagem que conquista de diferentes formas. No aspecto físico, o corpo rechonchudo, o rosto ovalado e o olhar penetrante e sagaz criam um semblante cômico e curioso. O fato alinhado, o bigode garboso, o cabelo lustroso e a fala carregada de sotaque, que ecoa por lábios constantemente contraídos, somam à figura excêntrica de Poirot.
Enquanto o físico cria uma imagem divertida, o desenvolvimento psicológico do detetive também ganha grandiosidade pelo trabalho de Finney. É possível perceber a mente de Poirot trabalhando, captando e registrando incontáveis informações, equacionando paulatinamente uma vasta gama de variáveis para chegar a conclusões certeiras. Além disso, há um caricato (no melhor sentido) senso de humor que se balanceia perfeitamente com o sério código pessoal de ética no qual Poirot se ancora. O detetive rouba a cena de variadas formas e mesmo entre um elenco premiado e robusto, consegue destacar-se com méritos. Não à toa que Sidney Lumet é conhecido não apenas por seu amplo conhecimento técnico, mas por extrair performances memoráveis de seus atores.
A grande quantidade de atores e atrizes que estrelam o filme consegue ser igualmente bem trabalhada por Lumet. A dinâmica narrativa inclusive lembra outro trabalho do diretor, 12 Homens e uma Sentença, de 1957, onde ele também lidou com um grande elenco (embora menos estrelado) num espaço razoavelmente pequeno. A ideia, portanto, de ter Lumet como diretor de Assassinato no Expresso do Oriente não poderia ser mais acertada.
Durante as duas horas e oito minutos de filme, Lumet consegue dar camadas à maioria dos personagens, assim como dispões tempo de telo suficiente para cada um deles. Com poucos cortes – é preciso sempre lembrar-se dos padrões da época –, o filme discorre em dinâmica suficiente para captar a atenção do público. A investigação é conduzida de forma a dar pequenas pistas que, para nós, reles mortais, significam tudo ou nada. Mas na mente de Poirot, cada peça, por mais irrisória que aparente ser, faz parte de um quebra-cabeças tão grande quanto complexo. Assim, o público é conduzido com maestria por Lumet até a memorável revelação do assassino. A cena ocorre por um grandioso monologo de Albert Finney, intercalado com a recriação do assassinato. Tudo isso culmina noutro mérito do filme: o debate sobre a moralidade.
Agatha Cristie utilizou dois eventos reais para criar o livro que seria adaptado por Lumet. O primeiro foi o sequestro do bebê Charles Augustus Lindbergh Junior de Charles Lindbergh, pioneiro da aviação estadunidense. O bebê fora encontrado morto cerca de duas semanas após, não muito longe de seu lar. O segundo caso foi a nevasca que prendeu o Expresso do Oriente por seis dias, perto de uma cidade turca, em fevereiro de 1929.
Ambos os eventos fundiram-se na escrita de Cristie para criar um debate moral para o leitor. Não entrarei em detalhes sobre as particularidades do debate para não atrapalhar qualquer surpresa ou entregar algum spoiler acidental. Mas vale dizer que o mérito da escritora foi replicado na adaptação de Lumet.
Assassinato no Expresso do Oriente é um exemplo de bom cinema. Cada elemento técnico e narrativo é cuidadosamente alocado no filme, resultando numa experiência completa: visual, cênica, sensorial, artística, moral e de entretenimento. Merece atenção e, por que não, aplausos!