Crítica: Mãe! (crítica-resposta)
Esta crítica de “Mãe!” se propõe a ser uma forma diferente de criticar um filme: respondendo a argumentos de outros textos.
Ficha técnica:
Direção e Roteiro: Darren Aronofsky
Elenco: Jennifer Lawrence, Michelle Pfeiffer, Javier Bardem, Domhnall Gleeson, Ed Harris, Brian Gleeson, Kristen Wiig
Sinopse: Um casal vive sua tranquila existência em uma casa. Movida pelo amor que sente para construir a casa e fazer dela um paraíso, a esposa convive com seu companheiro. Ele é um artista movido pela necessidade de criar. Mas então, hóspedes inesperados começam a atrapalhar a vida deles.
Incômodo. Foi isso o que eu senti ao ver “Mãe!”. E arte não é algo que deveria incomodar, em vez de apenas repetir o lugar-comum que nos deixa na zona de conforto? Aliás, voltando ao título: o nome do filme deveria ser grafado com letras minúsculas, que é como se apresenta. Mas prefiro a letra maiúscula, que reforça importância a quem realmente merece tê-la, segundo o próprio discurso imagético apresentado pelo cineasta Darren Aronofsky. A letra maiúscula nos créditos finais para Him/Ele (Javier Bardem) poderia muito bem ser uma ironia. Se não, é apenas uma informação (ainda mais) clara do caminho de interpretações possíveis a que Aronofsky nos guia.
Oras! Após ser feito um “guião” (palavra usada sabiamente pelos portugueses, que insistimos em chamar “roteiro”), somos guiados pelo diretor, aquele que dirige – que os italianos sabiamente chamam de “regista”, o que rege a orquestra.
Não é de se espantar, portanto, que sejamos guiados por Aronofsky àquilo que ele buscava discutir.
Citar todos os detalhes do filme seria trabalho demorado, complexo. Rememorar as referências e buscar entender cada frame do longa pode ser um tema para dissertações de mestrado. Na trama em que seguimos a cabeça de Jennifer Lawrence, a personagem-título, em uma sucessão de acontecimentos quase surreais porém alegóricos, não é de se espantar que ela fique grávida após criar em seu marido o desejo de gerar algo que vá além de sua criação anterior.
É aqui que começo a citar outros críticos. O objetivo é justamente promover um debate.
“Mas Jennifer amanhece maquiada, feliz e, sobretudo, grávida”. Inácio Araújo, da Folha, compreende o tempo fílmico como o mesmo da narrativa. Fecundada por Ele, a mãe descobre estar grávida no dia seguinte. Mas por que o corte não pode ter simbolizado um tempo maior? E, mesmo se a passagem de tempo tenha sido a mais óbvia, seria também claro como um cristal que, quando se trata de um filme alegórico, a sequência de acontecimentos possa ser ilógica. No âmbito da fábula, tudo pode.
A mesma compreensão é vista em outro trecho da crítica de Inácio Araújo: “De um pulo vamos ao final da gravidez, sempre à espera desse bebê desnutrido de Rosemary”. Ainda que utilizando-se de comparações óbvias, é interessante notar como o foco na “mãe”, por si só, já se diferencia do filme com novo no “bebê”. Aronofsky, ao contrário de Polanski, traveste de filme uma mensagem que quer passar: é o cinema feito como um conto de fadas e sua “moral da história”, em vez de uma trama que questiona o que é real. Em “Mãe!”, nada é real, e tudo é verdadeiro.
Por fim, Araújo diz que o filme “se vende como reflexão profunda sobre o futuro da humanidade”. Não seria o presente da humanidade? Ou até mesmo o passado? Talvez seja uma reflexão (mesmo que nem tão profunda) sobre nossas crenças e o que estamos fazendo com ela. Sobre o tratamento da sociedade à mulher. Ou muito mais que isso. E se pensar bem, ele “se vende” como um filme de terror, e nada mais que isso. O resto é aquilo que compramos dele.
O que Aronofsky faz em “Mãe!” é pretensioso. E que bom! Filmes de qualidade técnica inquestionável podem ser pretensiosos sem medo. O próprio diretor sempre o foi. E Marcelo Hessel, do Omelete, destaca isso. “Que demonstração mais desavergonhada de megalomania, recriar o Éden e a jornada de Maria, voltar aos temas bíblicos que marcam sua carreira desde o começo, mas desta vez se colocar frontalmente como a figura onipotente do Criador, inquestionável nas suas escolhas”.
Este trecho do texto de Hessel é sagaz. Afinal, Aronofsky mostra um pouco de si mesmo na figura de Bardem. A leitura que o longa faz do artista (que sempre que cria, de certa forma, brinca de ser Deus) como alguém cuja necessidade cíclica de criar se dá pelo simples prazer de fazê-lo se combina à leitura que o cineasta faz do próprio Deus. No fim das contas, ambos são a mesma coisa: egoístas em busca de satisfazer apenas a si mesmos. Resta saber se o filme é uma demonstração desavergonhada de megalomania. Há um abismo entre ser pretensioso e megalomaníaco, e um pouco de arrogância pode ser até uma boa ideia. Não critiquemos a audácia de quem se propõe a sair do lugar-comum!
E tanto Bardem quanto Lawrence conseguem extrair o máximo de suas performances. Sentimos o desespero da protagonista, ao mesmo tempo em que amamos a presença e odiamos as atitudes do artista e criador. As performances de ambos se dão “sem jamais perderem a capacidade de seguir como o que foram feitas para ser: símbolos”. É o que analisa Pablo Villaça, no Cinema em Cena. Cada um deles, em essência, é “um conceito abstrato, não um indivíduo”. São coelhos apostando corridas com tartarugas, raposas tentando colher uvas. É por isso que não possuem nomes. É por isso que dizem que são o que são.
A conclusão de Mario Abbade, em O Globo, cita o período da missa católica que se propõe a explicar a fé e os elementos utilizados no momento, a fim de que todos compreendam e se tornem conscientes do que é pregado. “Aronofsky sustenta a sua homilia por meio do texto, das ótimas interpretações dos quatro atores e também com a eficiência técnica da câmera de Matthew Libatique, um costumeiro colaborador do diretor”.
De fato, homilia é um termo que pode ser utilizado aqui. Não porque a palavra signifique uma explicação detalhada do que se lê no evangelho, mas porque ganhou o sentido pejorativo de algo moralizador e enfadonho.
Realmente: “Mãe!” pode ser de fato uma explicação moralista que se propõe a esclarecer demais. E o filme ainda pode confundir sua arte de incomodar e perturbar com o enfado. Aliás, não seria o enfado um tipo de aborrecimento?
Que mais filmes possam nos causar incômodo.
Nem tudo na vida foi feito ao nosso bel prazer… e arte deveria imitá-la, não é mesmo?
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ENTENDA MAIS SOBRE O FILME NO ARTIGO DE FERNANDO MACHADO!
Resumo
Realmente: “Mãe!” pode ser de fato uma explicação moralista que se propõe a esclarecer demais. E o filme ainda pode confundir sua arte de incomodar e perturbar com o enfado. Aliás, não seria o enfado um tipo de aborrecimento?