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Crítica: Hamlet (1996)

Ficha técnica:

Direção e Roteiro: Kenneth Branagh

Elenco: kenneth Branagh, Kate Winslet, Julie Christie, Derek Jacobi, Jack Lemmon, Charlton Heston, Robin Williams, Billy Crystal, Rufus Sewell, Gérard Depardieu, Richard Attenborough, Judi Dench, Timothy Spall, John Gielgud, Richard Briers, John Mills, Nicholas Farrell

Nacionalidade e ano de produção: EUA, 1996

 

Escrita entre 1599 e 1602, a peça “Hamlet”, de William Shakespeare, é sem dúvida uma das maiores de todos os tempos. E tal obra-prima não poderia ficar de fora das adaptações cinematográficas; e o cinema foi lá e produziu várias adaptações (algumas marcantes, outras não) da história de vingança e loucura do famoso príncipe dinamarquês.

 

Ser ou não ser
Em 1948, Laurence Olivier produziu, co-roteirizou, dirigiu e estrelou “Hamlet”, sua prestigiada ‘versão noir’ da famosa peça. Olivier, que, quatro anos antes já havia levado a também shakespeariana peça “Henrique V” para as telas, fez de “Hamlet” seu maior testamento, evocando poder, loucura, obsessão, paixão e vingança na trajetória de um príncipe atormentado. A obra venceu quatro Oscars (filme, ator, direção de arte em preto e branco e figurino em preto e branco).
A versão também em preto e branco do russo Grigori Kozintsev, dirigida em 1964, é ainda melhor que a de Olivier. Criando cenas fantásticas como o encontro com o rei morto, Kozintsev cria um fantástico mosaico de situações emergenciais que nos fazem mergulhar na dor de seu personagem enfurecido. A excelente fotografia realça ainda mais toda a angústia vivida por Hamlet.
Em 1967, o diretor italiano Franco Zeffirelli filmou “A Megera Domada” e no ano seguinte “Romeu e Julieta”, duas peças clássicas de Shakespeare. O resultado é formidável. Então, porque não filmar também a melhor delas? E foi o que Zeffirelli fez em 1990, colocando Mel Gibon no papel-título. Podemos dizer que se trata de uma obra que foge da teatralidade, mas ainda assim está aquém das duas obras anteriores citadas.
Em 2000, Ethan Hawke viveu um Hamlet moderno em “Hamlet – Vingança e Tragédia”, mas a ideia não deu muito certo, resultando em uma obra irregular, sem emoção, restando apenas bons atores coadjuvantes defendendo bem seus papéis. A versão moderna feita para a TV britânica em 2009 e estrelada por David Tennant, se sai melhor, ainda que tenha também suas limitações.

Muitos concordam que, entre todas as versões, a melhor é a que Kenneth Branagh dirigiu em 1996. Pela primeira vez foi levada às telas todo o texto da peça de Shakespeare. As produções anteriores (e posteriores) cortaram partes da história, mas apenas Branagh ‘ousou’ mostrar a obra de forma integral. Em pouco mais de quatro horas de duração, somos apresentados à trama clássica em todos os seus aspectos, lugares, ações, temas. Nada é tirado, nada fica de fora. Trata-se do projeto mais ambicioso já feito de uma obra do dramaturgo inglês. Muito esforço e determinação do irlandês Kenneth Branagh, um ator dos palcos que sempre foi muito fascinado por Shakespeare. Do grande mestre da dramaturgia mundial, Branagh dirigiu e atuou em “Henrique V” (1989), uma das maiores peças históricas do bardo inglês, uma nova e bela versão da produção tão bem dirigida e protagonizada por Laurence Olivier em 1944. Em 1993, ele reuniu um elenco famoso na ótima comédia “Muito Barulho por Nada”. Em 1995, atuou em “Othello”, no papel do vilão Iago. Em 1996 foi dirigido por Al Pacino no documentário “Ricardo III – Um Ensaio”. Foi neste mesmo ano que ele dirigiu “Hamlet”, sua última incursão até o momento na obra de Shakespeare.

O “Hamlet” de Branagh é épico, grandioso, tudo muito suntuoso, um projeto merecedor de todos os elogios. Quando Hamlet (Kenneth Branagh) é alertado pelos amigos sobre a aparição do fantasma de seu pai, tudo ganha contornos extremamente trágicos. O jovem príncipe fica sabendo que seu tio Cláudio (Derek Jacobi) assassinou seu próprio irmão. A gravidade de tudo isso é ainda pior, porque um mês depois o tio assassino se casou com a própria cunhada (Julie Christie), fazendo-se rei. A trajetória de Hamlet daí em diante se resume principalmente a planos de vingança contra o usurpador do trono. Fingindo-se de louco (ou será que a loucura de fato se faz presente?), o vingativo príncipe percorre os corredores e aposentos do palácio, divagando e espalhando questões existenciais, promovendo a desconfiança de todos à sua volta. Nem a jovem Ofélia (Kate Winslet, antes de seu sucesso em “Titanic”) é poupada dos excessos de Hamlet. Ninguém sai ileso de sua fúria ensandecida, nem ele próprio, que se vê em um mar de dúvidas, temendo em alguns momentos cometer alguma injustiça, porque em certos momentos ele imagina que pode estar sendo vítima de artimanha malignas. Mas não demora para que o desejo de vingança se aposse dele novamente e faça com que o rei, temeroso, tome providências para que seu sobrinho não se torne uma ameaça ainda mais descontrolada… e mortal. Quando atores de rua chegam ao castelo, Hamlet tem a brilhante ideia de encenar uma peça que mostre exatamente como um rei fora assassinado pelo próprio irmão, com todos os detalhes de como realmente acontecera com seu pai. O teatro é montado, a peça encenada, e as dúvidas deixam de existir.
Como em todas as suas adaptações shakespearianas, Branagh atua no papel principal. Em “Hamlet”, ele evita quaisquer excessos, moldando um personagem mais contido, mesmo nos momentos de fúria e desespero. Seu Hamlet é mais observador e menos inconsequente do que, por exemplo, aquele interpretado por Mel Gibson. Aqui há muitos sussurros, jogo de olhares, closes que ampliam a ansiedade e dor do personagem. Em cima de toda essa camada de especulações e inevitável tragédia, está um elenco perfeito;  atores bastante familiarizados com a obra do dramaturgo inglês, como Jacobi, John Giesgud e Judi Dench, e grandes astros e estrelas como Christie, Winslet, Jack Lemmon, Timothy Spall, Gérard Depardieu, Richard Attenborough, Robin Williams, Billy Crystal (em um papel mais cômico) e Charlton Heston (que está excelente como o líder do grupo de teatro). Um cast perfeito que está em plena sintonia com toda a história.

O excelente texto fala por si só, e o que Branagh fez foi dar-lhe ritmo e fôlego cinematográfico, sem resultar em um teatro filmado. Para isso, ele escolheu locações mais amplas, com menos espaços fechados. Se distanciando do clima obscuro repleto de sombras da versão clássica de Olivier. Aqui tudo é muito cheio de luzes e cores, pisos quadriculados, muitos espelhos, portas em todos os lugares, tetos altos, lembrando mais a Rússia do século 19 do que a Dinamarca renascentista. Tudo é suavizado por movimentos de câmera mais leves e discretos. Para Branagh, o texto é mais importante do que qualquer interferência estilística que tente se sobressair, tornado assim mais palpável aquele mundo de intrigas, falsidade, orgulho, poder, loucura e vingança.
Como já falamos, a produção de Branagh procurou se distanciar do teatro filmado, e o que contribuiu também para isso foi a utilização da montagem paralela, onde o ritmo ganha mais força, intercalando mais de um momento da história em um mesmo segmento. Nesse caso, entra aqui também o adequado uso de flashbacks. Até as metalinguagens (como o teatro encenado em uma peça de teatro) são muito bem aproveitadas.
Para quem está familiarizado com a peça escrita, ver todos aqueles personagens ‘desfilando’ na tela é um grande deleite. Nos transportamos àquele mundo de frases célebres e imortais como “Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha sua vã filosofia”, “Ser ou não ser, eis a questão”, “A Loucura dos grandes deve ser vigiada”, “Mais Matéria e menos arte”, “Há algo de podre no reino da Dinamarca”.

Mas é preciso lembrar que as peças de Shakespeare são influenciadas pelas tragédias gregas, repleta de situações que muito se diferenciam da estrutura moderna de roteiro. Portanto, suas obras não são muito acessíveis para quem não está muito familiarizado com essa organização textual classicista. O que está no papel nem sempre funciona bem quando dito, como no teatro ou no cinema. Assim sendo, algumas pessoas estranham ver personagens ditando frases de efeito ou menos eloquentes. No caso da produção de Branagh, estamos nos referindo a um longo trabalho que ultrapassa quatro horas de duração (a peça de Shakespeare é também a maior escrita por ele), e isso acaba,  para muitos, sendo um grande problema (e desafio) a enfrentar. Sabendo disso, quando exibido aqui no Brasil em 1997, “Hamlet” foi ‘cortado’ quase pela metade, porque os exibidores temiam que um drama tão longo pudesse afastar parte do público. E um filme muito longo pode ser trocado por dois filmes, e com isso, mais venda de ingressos. Críticos na época chegaram a dizer de forma irônica que o brasileiro não tinha capacidade de assistir “Hamlet” na íntegra. Isso foi corrigido depois quando o filme foi lançado em VHS e bastante tempo depois quando foi lançado em DVD.
“Hamlet” foi indicado a apenas quatro Oscars: roteiro adaptado, direção de arte, figurino e trilha sonora em drama. Mas a Academia absurdamente o ignorou, deixando que ele saísse sem nenhum prêmio. Houve ali o não reconhecimento de uma produção magistral, uma obra-prima singular. “Hamlet” não é apenas um grande filme baseado em um grande texto, é também uma das maiores e mais profundas experiências já criadas pelo cinema. E isso não é pouco… o resto é silêncio.

 

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