Crítica: Ao Cair da Noite (It Comes at Night, 2017)
Ao Cair da Noite é o A Bruxa de 2017.
Ficha técnica:
Direção e roteiro: Trey Edward Shults
Elenco: Kelvin Harrison Jr., Joel Edgerton, Christopher Abbott, Carmen Ejogo
Nacionalidade e lançamento: EUA, 2017 (22 de junho de 2017 no Brasil)
Sinopse: Paul (Joel Edgerton) mora com sua esposa e o filho numa casa solitária e misteriosa, mas segura, até que chega uma família desesperada procurando refúgio. Aos poucos a paranóia e desconfiança vão aumentando e Paul vai fazer de tudo para proteger sua família contra algo que vem aterrorizando todos.
Caro leitor, a crítica deste filme será dividida em duas partes: uma onde direcionarei o filme para o público certo e outra contendo a análise do filme em si.
A primeira parte é bem simples e só ocupará este parágrafo: você gostou de filmes como A Bruxa, lançado no Brasil ano passado? Aprecia longas que têm camadas de interpretações, subtextos e discussões que vão reverberar pós-sessão? Então este é um filme para você. Caso prefira produções que expliquem o que está acontecendo, tenham diálogos expositivos e abusem dos jumpscares, então Ao Cair da Noite não é uma boa pedida. Tomara que você se encaixe no primeiro grupo e desfrute de um dos melhores filmes do ano.
Sim, It Comes at Night (no original) vai na contramão do terror fácil (alguns podem até questionar o gênero aqui). Ele exige do público uma posição ativa no processo. “por que tal coisa está acontecendo?”, o filme não vai se preocupar em te dizer, será necessário que você crie na tua cabeça e extraia as múltiplas interpretações. Tem hora que o filme flerta com uma ação de zumbi, ele jamais chega a entregar tal forma, nem de longe aliás. O mundo pós-apocalíptico não é desenhado, não sabemos como se chegou naquela situação ou as reais consequências do vírus/maldição/condição, pois nada disso importa, o foco aqui é outro.
Em contrapartida há uma tensão constante, parte por não sabermos o que pode acontecer. As regras são postas de modo superficial (no melhor sentido e de propósito) e por vezes apenas visualmente – quando exposto por diálogos, a coisa reforça a claustrofobia, ou seja, não é gratuito ou preguiça. Mas o que sustenta mesmo é toda a ambientação. A fotografia está intrinsecamente ligada à narrativa e ao sentimento da cena. Pode ser redundante falar isso, mas aqui em especial esse elemento é ressaltado.
Quando, por exemplo, o personagem Travis (Kelvin Harrison Jr.) caminha à noite pela casa, com um lampião na mão, o resto do ambiente é envolto em uma escuridão opressiva – que é exatamente o que ele está sentido, sentimento que também invade o público… O desafio de deixar parte da cena na penumbra é vencido com louvor. Nunca deixamos de enxergar o que é necessário – há filmes que confundem isso com simplesmente cegar e se furtar de mostrar (aí sim por preguiça ou até incompetência).
O mesmo ocorre nas incursões na floresta. Aqui temos algum clichê do gênero, mas usado com extrema parcimônia. Há um jumpscare bem encaixado e até necessário. Como eu disse antes, o filme não abusa desta ferramenta. O medo aqui é decorrência da atmosfera. Portanto, mais do que nunca: evitem celular e conversar durante este filme.
A história tem e não tem um peso primordial aqui. É nesse ponto que a coisa vai ruir para muitos. Alguns sairão com a sensação de que “o roteiro é fraco”. Mas luto, medo, sexualidade, paranoia, família, sobrevivência – física e mental – tudo isso é posto em tela em menor ou maior grau, de modo explícito ou implícito. E mais do que isso: cada repercussão desses temas é sentida de forma diferente por cada personagem. O real propósito de cada um também. Será que podemos confiar no personagem X? Será que tal fato realmente aconteceu? Quando a coisa vai para um lado, ou somos jogados para outros lados ou simplesmente não somos jogados para lugar algum. O filme brinca com a quebra de expectativa de um jeito muito inteligente. Cachorro, criança e doença – que é o trio do clichê de filmes dramáticos – estão presentes aqui, porém também subvertendo parte da lógica.
As atuações comprometem os atores a se dissiparem de uma certa vaidade. Há poucos rompantes, dessa forma, o que muitos considerariam uma grande atuação não é visto aqui. O que não significa ausência de emoção. Pelo contrário: a primeira cena já tem uma carga dramática forte, momento este que já carrega tanto significado que reverbera o filme inteiro. Movimentos sutis e brutos andam lado a lado ali. Uma beleza e asco, também.
Apesar de elenco equilibrado, quem se destaca é Kelvin Harrison Jr. O olhar dele é o nosso olhar na maior parte do tempo. E olhar é uma palavra importante na atuação do jovem. Desolação, vigor, impotência, tudo é bem transmitido ali. A questão onírica do personagem também é peça chave em Ao Cair da Noite.
A câmera do diretor e roteirista Trey Edward Shults pulsa o tempo inteiro. Movimentos circulares, mas usados de maneiras e com objetivos diferentes. Planos médios, closes e alguns mais abertos, refletem precisamente como puxar de cada cena o melhor. Toda a mise en scene funciona: a labiríntica casa, explorada com cautela; a mesa de refeição, que comprime os integrantes; além das armas e máscaras que imprimem o devido senso de urgência. Vale ressaltar o trabalho de maquiagem, principalmente na figura do avô.
Pode-se alegar que a recompensa final não é satisfatória. Mas se entregasse algo espalhafatoso iria contra a própria lógica estética-narrativa. Por saber exatamente o que é, mesmo que o público não saiba, onde quer chegar e como, Ao Cair da Noite é o filme mais autoconfiante do ano. Pois exerce tudo isso sem precisar de artifícios que facilitem a vida de quem está vendo. Obra para se degustar.
Resumo
Por saber exatamente o que é, mesmo que o público não saiba, onde quer chegar e como, Ao Cair da Noite é o filme mais autoconfiante do ano. Pois exerce tudo isso sem precisar de artifícios que facilitem a vida de quem está vendo. Obra para se degustar.