Crítica: Silêncio (Silence, 2016)
Silêncio é uma obra complexa e de difícil digestão, mas é puro cinema.
Ficha técnica:
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Jay Cocks
Elenco: Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson, Yôsuke Kubozuka, Issei Ogata
Nacionalidade e lançamento: EUA, 2016 (09 de março de 2017 no Brasil)
Sinopse: Dois padres jesuítas portugueses, Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver) tentam converter moradores de terras japonesas, mas são impedidos pelos senhores feudais, que ameaçam cristãos e estrangeiros com torturas e morte.
Falar das qualidade de Martin Scorsese é algo redundante. Veja os filmes dele e aplauda. Muito. Ponto.
Em Silêncio, há a genialidade dando as mãos para pequenos problemas que eu não esperava do diretor. O tema central é posto em tela de maneira tendenciosa, crua, bem trabalhada e altamente cinematográfica. Por esses adjetivos, percebe-se uma certa ambiguidade nas possibilidades de percepção do filme.
Primeiro destaque: a cinematografia. Não à toa Silêncio foi lembrado no Oscar na categoria de fotografia – única indicação da produção. Tudo nesse quesito é nada menos que deslumbrante. Um deleite visual, com enquadramentos que exploram a paisagem sem ser um mero abuso das belezas naturais. Vemos um trabalho de câmera que ajuda a construir a narrativa visualmente. Ler ou escutar essa história teria outro impacto, bem menor… O brilhantismo aqui vai além dos ambientes esfumaçados ou dos planos abertos, o mérito está também – e talvez principalmente – nos momentos mais intimistas. Vide as cenas nas celas.
Um ponto que tem que ser considerado é o tempo do filme. Aqui as opiniões devem se dividir: as quase três horas de duração são necessárias? Mais que isso: há uma boa divisão em tela? O filme é cansativo? As minhas respostas seriam: sim, sim e sim… ou seja, a jornada ter esse tempo é importante para que a gente construa um vínculo com o protagonista e até com o outro lado. A marcação dos três arcos é bem clara e cada qual tem um função bem estruturada. Porém, a recompensa demorar para chegar e passar de algumas partes é uma tarefa árdua. Vá sem sono, descansado e preparado para uma saga.
As atuações dão um peso a mais à trama. Não seria exagero reivindicar indicações aqui. Andrew Garfield no segundo papel religioso seguido como protagonista (ele teve um personagem bastante fervoroso no Até o último Homem), surpreende mais uma vez. Em momento algum ligamos os dois papeis e em ambos o elogio se faz justo. Há uma entrega física aqui, o desespero é transmitido sem apelação. Quem não gostou do Adam Driver em Star Wars deve apreciar menos ainda aqui. Talvez o pior dentre os principais atores. O personagem vai perdendo fôlego e em uma cena capital, na água, os gestos são exagerados. Liam Neeson, que teve grande destaque no marketing do filme, aparece pouco, mas entrega firmeza em bons diálogos. A presença dele não passa despercebida.
Vale muito o destaque para a ala japonesa do elenco. Em especial dois atores veteranos. Yôsuke Kubozuka tem nas mãos a figura mais completa e dúbia. É o tipo do personagem que me atrai. Sentimentos diferentes são postos em tela e as atitudes do personagem são questionáveis. Um ator fraco estragaria esse importante arco, Kubozuka dá conta plenamente. Em todas as aparições Kichijiro rouba a cena – desde bêbado, até no mais profundo sofrimento. Issei Ogata encarna Inoue com uma sutileza verborrágica. Ele parece degustar cada momento de “vilania” (as aspas se fazem necessárias, pois é assim que o filme pinta o personagem). Um problema, contudo, afetou todos os atores: o idioma. Há uma transição estranha principalmente entre inglês e japonês, sem contar que parte dos personagens são portugueses. Nesse ponto, o egocentrismo americano falou mais alto.
Escrevi ali sobre a “vilania” do personagem. Há uma clara puxação de sardinha para o lado cristão/ocidental. O lado japonês é cruel, torturador, intolerante e o Japão em si é dado como terra infértil – no sentido religioso. Pode-se argumentar que o foco aqui é a visão de um personagem na época (século XVII), então é natural ter esse viés. Tal elemento pode incomodar alguns ou ser irrelevante/natural para outros. Todavia, há um belo diálogo no final onde as ideias são confrontadas. O último frame de Silêncio, porém, é completamente desnecessário e um erro que não é perdoável em alguém do quilate do Scorsese. Só por essa cena o filme perde meia estrela.
A violência em Silêncio não é gratuita, mas quase derrapa. Para o meu gosto, não vi problemas, mas entendo perfeitamente quem se sentir incomodado. Essa ferramenta era parte fundamental, por isso descartá-la não seria uma opção inteligente. Uma frase chama atenção: “deus ouve as tuas preces, mas será que ouve os teus gritos?”.
Já as passagens de tempo, notadamente no final, deixam muito a desejar. O foco narrativo não funciona, a maquiagem tampouco e temos até problemas de montagem. O último arco – melhor do filme – fica capenga nesse sentido. Silêncio, portanto, não é para qualquer um. Se você quiser encarar saiba onde está pisando…