Isso é muito Black Mirror – Retratos da violência em “Engenharia Reversa (Men Against Fire)” Parte Um
“É muito mais fácil atirar mirando em um bicho-papão” – Nem tudo é o que parece no meio do campo de batalha. Men Against Fire e a violência do cotidiano.
Ficha técnica:
Direção: Jakob Verbruggen
Roteiro: Charlie Brooker
Elenco: Malachi Kirby, Madeline Brewer, Ariane Labed, Sarah Snook
Sinopse (oficial Netflix): Após sua primeira batalha contra um inimigo elusivo, um soldado começa a ter sensações estranhas e sentir pequenas falhas técnicas.
Este é a primeira parte, de duas, de um análise sobre o seriado Black Mirror, precisamente do quinto episódio da terceira temporada, agora produzido e distribuído pela Netflix.
Ele foi originalmente escrito por mim e pela Natália Zamprogno para a disciplina “Teoria dos Efeitos de Mídia”, administrada pelo doutor em Comunicação pela UFF, Kleber Mendonça, e por sua orientanda, Tatiana Lima, no curso de graduação Estudos Culturais e de Mídia, da Universidade Federal Fluminense.
Adaptei o seu conteúdo para a web, de maneira a ficar mais fluído e interessante para o público em geral.
Para maiores informações sobre fontes, bibliografia, etc, é só adicionar um comentário no final da página.
A partir deste ponto, este artigo contém revelações sobre enredo e acontecimentos da drama, continue lendo por sua conta e risco.
Black Mirror é uma minissérie do Reino Unido, escrita e majoritariamente roteirizada por Charlie Brooker, que procura mostrar o potencial maligno de tecnologias existentes (ou próximas da existência) em nossa sociedade. Com um olhar extremamente crítico e pessimista para o futuro, traz perspectivas assustadoras, já que usa conceitos sociais e culturais já praticados e os eleva à máxima potência.
Todos os episódios contam com um background que centraliza o papel das tecnologias, em sua maioria digitais e sociais, no mundo, entrelaçado com o comportamento humano, maior parte deles trazendo o homem como o lobo do homem. As tecnologias, sempre foram catalisadoras do comportamento humano, seja ele positivo ou negativo, e Black Mirror procura esfregar na nossa cara o quanto todo esse poder é perigoso e facilmente voltado para o revés e a tragédia.
Engenharia Reversa (Men Against Fire)
Alguns dos conceitos que serão trabalhados nesta análise são de como a real violência é mascarada através de discursos que a tentam explicar, mas que se afastam convenientemente dela; o luto seletivo, que diz qual vida deve ser lembrada e qual deve ser propositalmente marginalizada; e quais são os mecanismos de poder e pequenos poderes que privilegiam a classe dominante e que perpetuam a desigualdade.
Ensaiamos também sobre como os casos de violência recentes se entrelaçam com os ideais exibidos pelo episódio “Men Against Fire” e como a peça poderia ser um documentário, se a despisse dos apetrechos tecnológicos ainda inexistentes que estão contidos nela.
Premissa do Episódio
O episódio “Men Against Fire” tem como protagonista o soldado Stripe, integrante do exército americano, participando de sua primeira missão, na Dinamarca, que tem como objetivo exterminar seres humanos mutantes. As “baratas”, como foram apelidadas, são apresentadas como seres perigosos que roubam e destroem os pequenos vilarejos e se escondem em lugares remotos. Tais seres nos são apresentados com um semblante monstruoso e amedrontador, de modo que os soldados vão à caça sem a menor piedade ou arrependimento. Para eles, exterminar as baratas é uma grande conquista e honra.
Cada soldado recebe um implante neurológico chamado de MASS, uma espécie de chip que altera a visão e apresenta um banco de dados em forma de realidade aumentada, como por exemplo mapas visuais dos locais a serem invadidos. Ademais, altera também os outros sentidos, como olfato e tato. Por exemplo, por que sentir cheiros desagradáveis, como gás, ou se distrair com uma irritação na pele se a interface pode indicar se qualquer ambiente é perigoso ou não e onde esse perigo está?
A partir desses “monstros” e da tecnologia apresentada o episódio, o primeiro a ter como tema central e direto a temática da guerra, se desenvolve.
É muito mais fácil atirar mirando em um bicho-papão
Para iniciar nossa análise das conjunturas abordadas acima, é possível traçar um paralelo entre o cenário sócio-político deste episódio e o contexto da sociedade brasileira aos olhos de Marilena Chauí no texto “Uma ideologia perversa”.
Marilena discorre que vivemos no Brasil um paradoxo baseado em duas instâncias: a violência e a ética; onde grita-se contra a violência, pedindo “retorno à ética”, ao passo que são midiatizadas e consumidas imagens e explicações para a violência que mascaram a existência e a identificação da violência real. Marilena identifica dispositivos que ocultam a violência real: dispositivo jurídico, dispositivo sociológico, dispositivo de exclusão e dispositivo de distinção entre o essencial e o acidental. Tomaremos para nosso estudo os dispositivos de exclusão e de distinção entre o essencial e o acidental.
O dispositivo de exclusão se trata da distinção entre um “nós não-violentos” e um “eles violentos”. No episódio podemos identificar um “nós não-violentos” como os “cidadãos de bem” da Dinamarca junto aos soldados americanos, e um “eles violentos” como as baratas. As baratas são retratadas pela propaganda do discurso dominante como seres monstruosos e perigosos, que destroem vilarejos violentamente e atrapalham a vida dos “cidadãos de bem”, que nada fizeram para merecer tais atrocidades. Na realidade, esta propaganda esconde que as baratas são cidadãos comuns que estão sendo perseguidos e exterminados, e passam a vida se escondendo e lutando para sobreviver. Este extermínio é a violência real.
Na parte dois aprofundaremos os conceitos de violência, lugar de fala e vida passível de luto, segundo a ótica dos autores escolhidos.
Novamente, qualquer dúvida sobre os conceitos apresentados, curiosidades, bibliografia, ou apenas expandir nossa discussão, é só comentar abaixo.