#ROCHASEMCORES🌈 | no debate | “Diamante, O Bailarina” por Pedro Jorge “Cabron”.
Ainda que a orientação sexual dos atletas de todas as modalidades ainda esteja enclausurada no armário do machismo, que o protagonismo negro tenha que ser conquistado diariamente com muita luta, pra que as vozes silenciadas ecoem fora do território da subserviência, do colonialismo e do racismo normatizado, e que sejamos o país onde mais se mata por homofobia no mundo, a mídia e os produtos culturais insistem em nos mercantilizar sob a reprodução de estereótipos como “o país do futebol”, “o paraíso da miscigenação harmônica entre as raças”, “a terra da hospitalidade”, que continuam à rasurar nossa identidade nacional.
Nesse contexto utopicamente hostil que compõe o imaginário imbuído por anos na nossa história, assistir um filme como “Diamante, O Bailarina” que discute esses temas com ousadia e um olhar despido de preconceitos, é motivo instantâneo de orgulho e provocador de reflexões a cerca de quem somos como nação e indivíduo livre, e de como nós, principalmente as minorias historicamente invisibilizadas, são representadas nas narrativas audiovisuais. Exibido recentemente no 24º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade em São Paulo, o filme conta a história de um boxeador gay que se destaca por seu domínio corporal e sua rapidez com o jogo de pernas. À noite, ele se apresenta como drag queen em uma boate, e terá que superar preconceitos pra ser campeão.
Convidamos o cineasta Pedro Jorge “Cabron” (“As Olívias na TV” – do Multishow e “Transando com Laerte” no Canal Brasil) pra estrelar a última entrevista de 2016 da coluna “Rochas”. O cineasta falou sobre o processo de criação do curta metragem, as experiências por trás de cada tema abordado e os ecos antropológicos, sociais e sexuais da sua obra.
#RochasEmCores🌈 | no debate | – parte I – apresenta:
Pedro Jorge “Cabron”.
1.) O curta metragem “Diamante, O Bailarina” dialoga simultaneamente com o debate em torno da questão racial e da diversidade de gênero. De que forma a discussão de temas arreigados no cerne histórico da existência humana contemporânea contribui pra uma maior visibilidade artística e na mudança de comportamento em torno do eterno mito da democracia racial brasileira e da “inexistência” da homofobia?
O audiovisual no Brasil é elitista. Nós brancos dominamos esse meio e pouco olhamos pra essa questão. Além do que também é um meio machista. Eu venho pensando nessas questões devido à uma série de manifestações que se tornaram necessárias. Vivemos um racismo/homofobia/machismo silenciosos quando não vemos nas na frente e atrás das câmeras negrxs, gays, mulheres, etc. A culpa é do próprio audiovisual e da sociedade que o fez dentro de sua história. Citamos poucos diretorxs negrxs, gays, mulheres etc. Temos poucas referências dessas expressões. Quando escrevo esse filme, penso em diversas questões. O negro, o gay, a posição da mulher perante o mundo machista (no caso o boxe), enfim, temos muitas questões que são levantadas em vinte e dois minutos de filme. É difícil dar conta de tudo. Mas é necessário dar conta de tudo. Uma coisa que me perpetuou durante o processo todo desse filme foi justamente o local de fala. Eu sou branco e heterossexual. Isso foi uma questão pra mim desde o início quando quis fazer esse filme. Estou no convívio de negrxs, gays, mulheres, japonesxs, judeus, judias, árabes, enfim, isso está em torno do meu mundo, eu olho pra todas essas questões. O tempo todo perguntava pra todos da equipe que continha negrxs, gays e mulheres que se algo saísse do trilho que avisassem na hora. Isso era uma regra imposta, à partir disso, a necessidade é de comunicar. Mas saber que existe um local de fala e de vivência que eu não conseguirei estar. Porque envolve o corpo a corpo com as questões e isso muitas vezes não é possível ser racional. Portanto, acho que conseguir olhar pra isso sem ferir já um ótimo passo. Quanto a representação dx negrx e da diversidade seja ela qual for, nós temos grandes representantes que cada vez estão ganhando mais voz. Estar em torno deles e se aproximar é uma forma de olhar a manifestação de forma mais ampla, porque há sempre o histórico que não se tornou oficial pelo preconceito. Essa mudança está acontecendo dentro do audiovisual, basta começarmos a olhar pra ela. (não sei se respondi sua questão ou se enrolei um monte)
2.) O curta metragem foi exibido esse mês no 24º Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade em São Paulo. A existência de festivais e eventos engajados com a causa da diversidade de gênero é um dos pontos importantes pra fortalecer esse nicho do audiovisual brasileiro, e instigar os profissionais na realização de abordagens cada vez mais profundas e ousadas. Quais as janelas necessárias pra que o mercado cinematográfico LGBT supere as barreiras do preconceito e tenha ainda mais êxito, do ponto de vista de quem produz e de quem consume?
O universo LGBT é incrível. Sempre foi, mas viveu na marginalidade por pura ignorância por parte da sociedade. Posso afirmar que xs artistas mais interessantes que conheço são gays. Os filmes que mais tem me fascinado tratam das questões da diversidade. Acho que há uma mudança maravilhosa dentro da produção em termos técnicos, ou seja, hoje com o advento do digital, as ferramentas estão mais acessíveis. Hoje é possível filmar com lentes, um bom equipamento de som, etc. Está mais fácil de se obter uma boa projeção por um preço mais acessível. Isso envolve os festivais. Hoje para se fazer um festival os valores são mais enxutos, apesar de ser uma trabalheira e tanto, mas é possível e isso se configura em uma gama maior, tornando possível uma maior manifestação de valores, idéias, estéticas e discursos. Ainda existe preconceito, o preconceito está presente, nossa sociedade anda pra trás, até o caranguejo avança mais que nós. O Brasil é o pior país pra liberdade de expressão, inclusive é o país que mais comete crimes contra gays. No meu ver, uma política de exibição de filmes seguida de debate em escolas, seria ótimo. Sinto a molecada mais expressiva, mais solta do que foi quando eu mesmo era moleque. Sinto avanço, mas sei que não podemos nos iludir, o preconceito ainda é forte. Mas o mercado audiovisual LGBT cresceu e muito.
3.) “Diamante” simboliza uma ruptura ao machismo que permeia a orientação sexual das e dos atletas e ao protagonismo negro na cena audiovisual, relegado até então à papeis obtusos e sem grande importância dramática. Ter um protagonista negro bem sucedido e resolvido, que durante o dia realiza-se com uma luva de boxe no ringue e à noite deleita-se na existência de um alter ego glamouroso e empoderado foi mais uma forma de gritar em prol da liberdade e da diversidade que existe no mundo? Qual o papel do artista diante os marcadores sociais de uma sociedade conservadora e desigual?
Bom, eu concordo que uma ruptura com o machismo dentro do universo do boxe é necessária. Não importa a natureza sexual do corpo masculino, ele será sempre um corpo masculino, ou seja, há os músculos de um homem capaz de machucar independente da natureza sexual dele. Esse filme pra mim funcionou como um grito mesmo, de que sim isso é real. O esporte é cheio de gays que não podem viver sendo eles mesmo pelo preconceito. Quando conseguem se livrar são humilhados, vaiados, enfim, é um retrocesso da porra. No boxe há dois casos famosos, um é Emile Griffith, que foi penta campeão mundial meio-médio de boxe, mas após ser muito provocado em uma luta contra o cubano Benny Paret, ele perdeu a cabeça e acabou o matando no ringue. Após o ocorrido, ele ficou muito abalado e resolveu largar o boxe, na coletiva de impressa desabafou com uma frase que resume bem o problema do preconceito, ele disse: “Eu mato um homem e vocês me perdoam, eu amo um homem e vocês me condenam”. Outro boxeador que se assumiu gay é o portoriquenho Orlando Cruz, ele se disse um homem do orgulho gay: “No ringue, luto contra todas as injustiças contra os gays, cada golpe representa a liberdade, o orgulho e repúdio contra o preconceito”. Acho que temos de olhar e falar dessas coisas, elas estão na nossa cara, gritando. Se não olharmos e refletirmos quanto à isso, perdemos, quem perde somos todos nós. Quanto a questão de colocar x negrx em evidência é algo que não fizemos porque o racismo existe. Vivemos num país de negros, de miscigenação, não adianta buscar sempre brancos, loiros, ruivos etc, não estamos na Polônia, na Escandinávia, estamos no Brasil! Eu saio todos os dias de casa, vou filmar, e eu vejo negros, asiáticos, árabes, bolivianos, alemães, eu vejo tudo isso, e sempre me pergunto, porque não mostramos isso? Porque a publicidade insiste em não olhar isso. A cultura negra é foda, é forte, é bela, está na nossa cara. As drags, as travestis, as mulheres e homens trans estão andando na nossa cara, está na hora de olhar, retratar isso, trabalhar com essas pessoas, trabalhar para essas pessoas, trocar. A natureza sexual, a etnia, a cor da pele, nada disso deveria ser uma questão pra nós, mas por mais utópico que seja isso que eu estou falando, o preconceito tá aí, a diferença social coloca isso pras pessoas. Quando eu branco trabalho com um negro eu tenho que saber trocar com ele. Porque eu faço parte de uma cultura viciada por uma sociedade. É uma troca, o Sidney me orienta, o João Acaiabe me orienta, eu os oriento, estamos juntos, nos gostamos, nos respeitamos, nos admiramos, enfim, eu já tenho três novos roteiros. Há papel para negrxs em todos, mas não estou me colocando com o salvador da pátria, eu gosto de muitos atores e atrizes, algumxs são negrxs, mais o que admiro mesmo é arte deles. São artistas incríveis. A produtora dos filmes é a Issis Valenzuela, ela é negra, ela questiona, ela pergunta, ela provoca, tudo isso está em torno da criação e ajuda muito as próprias perguntas que tenho quanto a tudo isso.
O ator Sidney Santiago (Diamante) e o diretor/roteirista no set de filmagem do filme.
4.) Como foi a criação do roteiro de “Diamante, O Bailarina”, e desse protagonista homônimo tão complexo, cheio dos mais distintos e paradoxais anseios? Houve inspiração em alguma experiência pessoal ou próxima do olhar do diretor que se reforça na afirmação de uma identidade, uma alteridade e um desejo de posicionar esse olhar empoderado que te move?
Eu me viciei em boxe, primeiro lendo sobre o assunto, li uma média de 15 livros sobre o assunto e pirei nisso, em todos esse livros, há uma afirmação de que o segredo maior no boxe é o trabalho de quadril e pernas. Após isso, pensei em unir dois universos distintos, um boxeador que tivesse isso diferente e que pudesse ter um maior destaque por ter tudo isso melhor desenvolvido por ser gay. Depois fui atrás de conhecer o universo drag. Num laboratório que fiz com o roteiro a Andrea Capela me orientou a ir em shows de drags pra entender melhor aquele universo, porque o boxe era perfeito como era descrito, mas as drags faltava uma vivência. Segui a risca e descobri um universo incrível. Chamei um amigo que admiro muito, o Rui Calvo, e trabalhamos algumas leituras juntos pra enriquecer algumas angústias e inquietações do personagem. O lance do flyer veio do Rui, isso era algo que ajudava a amarrar os dois universos. Enfim, foi mais ou menos esse processo. Lembrando que o roteiro só termina de ser reescrito quando o filme está finalizado.
5.) “- Voe como uma borboleta, ferroe como uma abelha”. Essa frase de Muhammad Ali inicia a narrativa. Essa metáfora entre a borboleta e a abelha, de alguma forma reflete o equilíbrio que falta a nós “homo sapiens” pra que possamos conviver de forma respeitosa e amável com as diferenças? É possível mudar o cenário de violência e intolerância em que afundamos?
Olha, a frase acho que resume bem o personagem, ele voa lindamente como uma borboleta sendo drag e quando sobe ao ringue o bicho pega. Aí vem pedreira, rs. Acho que a violência é horrível, a intolerância é horrível, qualquer manifestação que coloca o outro em risco é uma merda. Digo isso por ter uma grande violência interna com a sensação de injustiça que existe no mundo. Sou bastante pessimista com a situação do mundo hoje e confesso que certas mudanças nós não veremos, mas seguimos lutando pra que essa semente seja plantada. Mas o exercício diário que é o respeito, confesso que sinto na pele que vale muito a pena.
6.) Qual foi a recepção e repercussão do filme no Mix Festival? Há novas exibições agendados em festivais? Existe a possibilidade de ocorrer exibições em outras capitais do país?
O filme estreou no Mix e foi do caralho a recepção de todos. Fez um bem da porra tudo que ouvi e vi nos olhos das pessoas. Fiquei muito honrado com a receptividade. Estamos mandando pros festivais, aguardando respostas, vamos ver. Esse universo de festivais é loteria, difícil ter certeza de aceitação por parte das curadorias, mas o importante é não parar de mandar! Espero que em breve o filme passe em outras cidades do país…sigo na torcida!
Em 2016, colorimos o Cinem(AÇÃO) com debates impostantes, entrevistas enriquecedoras e parcerias exclusivas!
Em 2017, continuaremos a colorir e nocautear o preconceito, a intolerância e o racismo!
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