#ROCHASEMDEBATE✊- ENTREVISTA 👑 SABRINA FIDALGO, DIRETORA DE “RAINHA”.
“Chico veio.
Chico trouxe.
“Ela desatinou, viu chegar quarta-feira
Acabar brincadeiras, bandeiras se desmanchando
E ela ainda está sambando…”
Hoje, às 21h, o curta metragem “RAINHA” estreia no Panorama Carioca do Festival Internacional Coisa de Cinema – Curta Cinema*. O filme, vencedor do edital do Projeto Usina Criativa de Cinema e premiado no Festival Ver e Fazer Filmes em MG, conta a história de Rita, uma carioca que é eleita rainha de bateria da escola de samba de sua comunidade, e terá que lutar contra forças obscuras externas e internas pra encontrar sua própria identidade.
Entrevistamos, com honra e felicidade, pela 2ª vez (a primeira foi em agosto do ano passado – link: https://cinemacao.com/2015/08/10/a-mulher-negra-no-cinema-brasileiro-por-sabrina-fidalgo/) a diretora Sabrina Fidalgo especialmente pra sessão #RochasEmDebate. Nessa entrevista “BAPHO” realizada por Skype, ela fala tudo sobre “Rainha”, o sexto curta metragem da sua sólida e representativa carreira.
#RochasEmDebate ✊ apresenta SABRINA FIDALGO.
1.) Como surgiu a criação do roteiro de “Rainha”? Sua “soul” carioca, sua ancestralidade negra e o empoderamento feminino contribuíram de que forma na construção identitária da obra?
“… Quando tive a primeira ideia do filme, já pensei na cena final… A ideia do roteiro em si surgiu logo depois do Personal Vivator (2014, Direção: Sabrina Fidalgo, Iansamble/Fidalgo Produções). Tivemos um processo muito intenso e visceral de criação e troca entre a equipe durante as filmagens, e eu já tinha a ideia de uma cena protagonizada por uma rainha de bateria, ligada à versão italiana da música “Ela desatinou” do Chico Buarque, que escuto há muito tempo. Aí comecei a construir a história a partir disso. Quem é essa rainha de bateria? Eu já tinha o final… E é muito louco isso porque não tem regras. Eu construí a narrativa toda pra chegar até a cena final, o ponto de partida. Eu gosto muito de carnaval, acho que nosso carnaval é de uma potência inacreditável. O carnaval do Rio com essa coisa toda, da apoteose… E gosto muito de um fotógrafo e etnólogo francês que morou em Salvador, e inclusive se tornou o babalorixá Fatumbi, que é o Pierre Verger… E do trabalho do artista contemporâneo Arthur Omar na obra “Antropologia da Face Gloriosa”.
2.) “Rainha” é todo filmado em preto e branco. Essa escolha estética tem alguma relação com a padronização racial na sociedade brasileira após a Abolição da Escravatura, comercializada aqui e lá fora, desde então?
“Não. A escolha estética em preto e branco não foi nesse sentido. Pelo contrário… Eu pensei em valorizar a negritude de alguns personagens no preto e branco. Porque tem uma questão estética na fotografia que é tabu, mas é muito comentada de forma preconceituosa nos bastidores dos sets que é a “dificuldade” em se fotografar pessoas negras. A tecnologia das câmeras foi feita e direcionada pras pessoas brancas. Da última vez que eu tive em Salvador, em uma edição da extinta Jornada Internacional de Cinema, fui no Museu e comprei o livro de fotos do Verger. Devorei aquele livro! Cada foto era um desbunde. Como ele retratava os negros da Bahia, e toda essa estética em P&B, a captação da essência brasileira. Não era carnaval, apesar de ter algumas fotos de carnaval, mas acho que ele captou o estado de espírito do povo negro baiano. Eu fiquei fascinada! O contraste dos tons de pele em preto e branco, a luz natural… E me veio a ideia de usar essa estética fotográfica do Verger na fotografia do filme. Quero fazer um carnaval preto e branco, porque todo mundo faz um carnaval colorido. Toda essa variedade de cores e brilhos pode ser incrivelmente fotografada em preto e branco também, que vai dar uma outra coisa, uma outra dimensão. Primeiro, porque vai nesse lugar de atemporalidade, e segundo porque esteticamente eu acho incrível e particularmente revolucionário você fotografar tanto brilho, plumas, penas e luxo no p&b. É uma quebra de paradigma visual. E logo depois eu vi um trabalho muito parecido, agora focado no Carnaval do Rio, do artista Arthur Omar. Fiquei encantada com a série de fotos da “Antropologia da Face Gloriosa”. É diferente do Verger, que por ser francês tem uma estética mais refinada. Quando vi esse trabalho fiquei chocada! Já era um outro olhar completamente mais anárquico sobre o carnaval, inclusive estilisticamente falando. É uma série de fotos da face, dos rostos em êxtase do carnaval. O carnaval tem essa coisa… É um transe dolorido, uma transcendência. Quem faz o carnaval de verdade é o povo, é o pobre e no carnaval eles viram reis… Aí eu falei: então é isso! É quase uma saga, porque as pessoas poderiam abandonar essa ideia de carnaval, mas não. Aquilo é a redenção delas. Juntou a minha vontade estética de ter uma estética de filmes italianos no neo realismo que eu amo! O filme na verdade é quase uma ode ao neo realismo, sobretudo “Noites de Cabíria” do Felllini. Eu quis muito referenciar o “Ascensor para o Cadafalso” do Louis Malle já englobando a Nouvelle Vague. E a partir daí veio a vontade de falar do corpo, da pressão da mídia, dos arquétipos do carnaval e como tudo isso interfere na vida de uma moça pobre que é linda, mas ainda não tem consciência disso”.
3.) No filme existem grandiosas referências étnicas, fundamentada em signos de religiões de matizes africanas, acentuadas pela presença do dialeto “iorubá”, língua trazida ao Brasil pelos escravos africanos traficados, na sua maioria, de Portugal e Holanda. Por conta disso, em algum momento você se preocupou em qualquer tipo de “censura”? Essa linguagem é mais uma forma de reafirmar a identidade brasileira?
“… Existem pessoas que falam iorubá no Brasil. Os filhos de santo das religiões de matizes africanas falam um iorubá perfeito. Essas pessoas já falaram essa língua quando chegaram aqui, e através do candomblé conseguiram manter a oralidade da língua. E ela só existe por conta da resistência do candomblé de terreiro. Eu já fui em vários terreiros e os Pais e Filhos de Santos falam iorubá. A gente adora ficar “babando ovo” de europeu. No sul existem tantas cidades onde até hoje as pessoas falam a língua dos seus antepassados alemães, preservam esse aspecto linguístico e ninguém fala dessas línguas de origens africanas. É uma resistência cultural que é surreal… Ao longo de 500 anos de opressão… Em hipótese alguma eu pensei na possibilidade do filme ser censurado. Porque também eu tive a sorte de ter sido apoiada por um edital do Projeto Usina em parceria com a Energisa. São empresas que estão tendo essa atenção com nosso cinema e apoiam a nossa brasilidade, essa política da diversidade. Vamos ver agora com o festivais. Neles tem esses problemas porque as curadorias são compostas por profissionais que não tem um olhar generoso como o que é diferente deles (homens, brancos, cis). Eu espero que isso mude e que “Rainha” possa fazer uma linda carreira. Eu confio no filme!”
4.) A estória de “Rita”, a protagonista vivida intensamente pela Ana Flávia Cavalcanti, revela, ainda que rapidamente, os bastidores de uma determinada Escola de Samba. Nesse contexto, a ideia do roteiro aduz ao imaginário da contravenção. Na ficção, o presidente da escola de samba, interpretado no filme por Jerry Gilli Rodrigues, propõe alguma reflexão sobre a relação de poder/exploração nas comunidades ou esse momento traduz uma sub-crítica à institucionalização do Carnaval?
“Sim, é uma denúncia… É um retrato de como é a coisa. Existe esse submundo nas escolas de samba, e a gente sabe que elas estão vinculadas com o jogo do bicho, com a contravenção… Essa indústria do carnaval do Rio sempre foi ligada a contravenção e a olhos vistos. Isso é comentado até durante os desfiles das escolas”.