🌈 ROCHAS EM CORES – ENTREVISTA 🎬 VICTOR NASCIMENTO, CINEASTA.
Após a publicação do texto de estreia sobre o documentário “Âncora do Marujo”, convidamos o cineasta baiano e diretor do doc. Victor Nascimento, pra nos conceder uma entrevista exclusiva contando o processo criativo na sua estreia como cineasta, sua relação emotiva com a obra e os intermeios que envolvem a profissão e o fazer cinema no Brasil.
#RochasEmCores apresenta 🌈 VICTOR NASCIMENTO.
É difícil falar sobre o cinema brasileiro como se ele fosse algo formalizado e homogêneo, de modo a poder analisá-lo tão amplamente. Ainda mais num espaço de tempo longo quanto dos anos 90 até agora. O que sei é que se faz mais filmes hoje. E que fazer um filme no Brasil é um ato político em si.
Com a democratização dos equipamentos, você tem filmes sendo feitos com pouquíssimo dinheiro, e que podem encontrar seu público de novas maneiras. Seja num festival, numa mostra, numa sala comercial ou na internet. Isso automaticamente diversifica as vozes. Apesar de ainda termos o predomínio dos homens na direção, vejo os espaços se abrindo à força. O tradicional não tem muita vez no mercado brasileiro, uma vez que o circuito está dominado pelos blockbusters. E abrindo portas alternativas de distribuição, as histórias se diversificam e chegam a mais gente. E esse é o objetivo. Seja a Carlota Joaquina de Carla Camurati, ou a Madame Satã de Karim Ainouz – todos querem simplesmente contar histórias. E é assim que questões de gênero habitarão nossas telas, com a diversidade dos autores. Porque não existe um ponto de vista sobre gênero. Ele é múltiplo e em constante mudança.
2 – Percebemos nos filmes nacionais e estrangeiros uma variação no discurso a respeito da sexualidade, como por exemplo, nos filmes “A Lei do Desejo” (Pedro Almodóvar – 1987), “Teus Olhos Meus” (Caio Sóh – 2011), “Cuatro Lunas” (Sergio Tovar Velarde – 2014). Dentro desse nicho é possível demarcar quais obras e/ou cineastas representam com mais maturidade essa diversidade temática?
Eu consigo destacar os que mais representaram o tema da sexualidade para mim. Novamente, a sexualidade é uma coisa muito particular e cada um tem um ponto de vista maravilhoso e complexo a respeito. Cada filme fala com seu público de uma forma.
3 – No documentário “Âncora do Marujo”, seu primeiro trabalho como cineasta, houve alguma preocupação em costurar a narrativa de uma maneira que rompesse imaginários e estereótipos enraizados na cena transformista?
Este é meu primeiro longa como diretor. Por ser um documentário, minha maior preocupação era em respeitar o objeto de estudo. Eu não sou da religião Umbanda, não sou negro, não sou transformista e não sou trans. Sou gay. E por isso tive que “abrir” os ouvidos e aprender muito na fase de pesquisa para saber como tratar dos temas levantados pelo filme. E o que mais percebi foi que não adiantaria generalizar ou querer ser “panfletário”, ou seja, defender uma bandeira a todo custo. E com isso acho que conseguimos um filme muito sincero. Há coisas lindas e feias no documentário. Há discursos maravilhosos, politizados. E há depoimentos ingênuos, de gente que nem sabe que está quebrando tabus e barreiras no dia a dia e que dão um excelente retrato da comunidade LGBTT de Salvador. E há gays machistas. Há drags transfóbicos. Enfim, não interferi no discurso. Meu papel era observar.
4 – Um dos grandes méritos do documentário é dar voz e protagonismo às transformistas, preservando as características histórico-religiosas do reduto cultural que dá nome a obra. A visibilidade de artistas e de espaços alternativos como o bar “Âncora do Marujo”, somado a isso, políticas públicas voltadas à diversidade sexual, seria um dos caminhos para descentralizar as produções e democratizar a distribuição dos filmes independentes?
Com certeza. O filme Âncora do Marujo foi feito com grana da produtora Maria João Filmes da qual fui sócio. Eles têm essa política de fazer filmes com temas LGBTs, o que é raro. Mas foi só depois que conseguimos um edital de finalização através do Governo da Bahia. Com isso pudemos estrear o filme e fizemos diversas sessões gratuitas em comunidades e escolas públicas. E foi nesses eventos que descobrimos a importância do diálogo. Nós levamos Scarleth Sangalo, uma das personagens do filme, e foi muito importante ver que, para algumas dessas pessoas, era a primeira e única vez que eles tiveram oportunidade de conversar com um transformista. E é isso que rompe as barreiras do preconceito. Fazer essa ponte.
5 – Existe, de fato, uma restrição cinematográfica na representação transex? Escolher profissionais transexuais é um dos pontos de partida para o fim de uma mea-representação das questões que envolvem a identidade de gênero?
Acredito que o cinema está muito atrasado quanto à inclusão de profissionais trans. Na verdade, isso é uma defasagem do mercado de trabalho em geral, mas como o cinema tem empresas menos estabelecidas ainda, não se pensa nessas políticas. Estamos só agora conseguindo diversificar o gênero dos profissionais (quase exclusivamente homens), então vai demorar até inserirmos toda forma de diversidade. Mas temos que começar já. De cima pra baixo. Os donos de produtoras têm que se sensibilizar pela causa. Os editais têm que incluir cotas. Temos que nos voluntariar para formar profissionais na comunidade LGBTT. Só assim vamos abrir os espaços.
6 – As nuances da diversidade de gênero são estímulos que provocam criação artística? Até que ponto a identidade cinematográfica das suas obras reflete suas próprias inquietações? Que outros temas afloram os instintos de criação do cineasta Victor Nascimento?
A sexualidade foi um dos primeiros temas que me moveram como artista, por vir de dentro de mim. Eu passei muito anos no armário e condenando minha orientação sexual. E isso influenciou muito a minha forma de ser e a minha sensibilidade para certos temas. Hoje, essa visão não mudou, mas se ampliou. Eu busco falar da sexualidade sob outras lentes, outros tipos de conflitos que não apenas o sair do armário ou ser gay numa sociedade preconceituosa. Eu me atraio muito pelo envelhecer. É um tema que me instiga, por medo e por amor. Então meus filmes necessariamente falam sobre a vida e a morte. E o sexo/sexualidade entram aí como uma forma íntima de se falar do humano.
7 – Qual a repercussão do documentário entre o público e a crítica? Quais seus próximos projetos?
A trajetória do Âncora do Marujo tem sido excelente. Nós encontramos um público fiel na internet e conseguimos mobilizar festivais, comunidades, espaços culturais, salas de cinema a abrirem as portas pra gente. Isso é muito bom e a recepção das pessoas é muito carinhosa. Eu tenho um longa de ficção inspirado no trabalho deste documentário que quero filmar no futuro. Por enquanto estou trabalhando no roteiro. Em breve, quem sabe, estaremos falando dele novamente.