Crítica: Batman- A Piada Mortal
A piada teve mais graça da primeira vez.
Ficha técnica:
Direção: Sam Liu, Bruce Timm
Roteiro: Brian Azzarello
Dubladores: Kevin Conroy, Mark Hamill, Tara Strong, Ray Wise, John DiMaggio
Nacionalidade e lançamento: EUA, 2016
Sinopse: Enquanto Batman caça o foragido Coringa, o palhaço do crime ataca a família Gordon para provar um argumento diabólico que reflete seu próprio declínio na loucura.
*o texto a seguir contém alguns spoilers
Ao sair da sessão da mais nova animação da DC, a versão animada da clássica Graphic Novel A Piada Mortal, eu senti um misto de confusão e indignação, que só pode ser traduzido com um sonoro “HOW DO YOU FUCK THAT UP”? Sério. Ao fim da projeção eu não sabia se estava decepcionado com o filme ou comigo mesmo por não ter gostado tanto quanto deveria. Tinha algo de errado.
Uma versão animada quase que quadro a quadro de uma das mais celebradas histórias do Batman E do Coringa, escrita pelo mestre Alan Moore, tendo como referência visual os expressivos desenhos de Brian Bolland. Então eu repito: COMO SE ESTRAGA ISSO? Bom… eu não quero que este seja um daqueles tipos de textos estereotipados de “fanboys” indignados (creio que seja tarde demais, já usei muito caps lock), mas a seguir falo o porquê de A Piada Mortal ser um filme que categorizo como“ok, eu acho..” e ser basicamente uma versão fraca da obra original de Alan Moore.
A animação é dividida em duas partes. Como ela ficaria muito curta se adapta-se apenas o Piada Mortal (a hq original tem 46 páginas), os realizadores incluíram um prólogo envolvendo a Batgirl (Voz no original de Tara Strong). Vou começar por ele e dizer porque o primeiro curta não funciona:
O problemático prólogo
O motivo inicial de conceberem uma nova história para Bárbara Gordon, a Batgirl, foi para fazer o público se familiarizar mais com a personagem, já que ela tem um papel pequeno na original. Resumindo: o Coringa invade a casa dos Gordon, atira em Bárbara (deixando-a paraplégica) e tira fotos da mesma nua e ensanguentada para atingir o pai dela, o comissário de polícia James Gordon. Há muitas discussões em torno de o vilão ter ou não estuprado ela (eu pessoalmente não acredito que o Coringa faria isso), mas o que importa é que tudo isso é feito para atingir o Gordon. Bárbara, no quadrinho original, só tem essa função, de servir como um PLOT DEVICE, uma motivação para Batman e para o comissário. Muitos viam isso como uma objetificação da ex-heroína, e o diretor da animação, Sam Liu (com a ajuda do veterano Bruce Timm) decidiu incluir um curta antes do segmento Piada Mortal.
Na história, a Batgirl deve lidar com um jovem criminoso chamado Paris Francesco, que tem uma espécie de fetiche pela heroína. Em meio aos jogos sádicos do bandido, presenciamos a paixão colegial da mesma com seu mentor, Bruce Wayne, vulgo Batman (Voz no original de Kevin Conroy). Sim. Coloquei paixão colegial pois é isso que é. A Bárbara que vemos aqui não é uma adolescente, mas é retratada como uma, incluindo aí uma paixãozinha envolvendo Bruce, estilo aluna que se apaixona pelo seu professor. Se esse fosse o ponta pé de, sei lá, um desenvolvimento interessante disso, até dá pra entender, mas não. O que acontece? Bom… Eles fodem. Isso mesmo, FODEM.
Não tenho outra palavra pra usar. É isso. Ao ver que Bárbara está encarando os jogos sádicos e provocativos de Francesco (e a luta contra o crime no geral) como um jogo, Batman retira Bárbara do caso, com medo de que a impulsividade e atitude leviana da mesma em relação as ações do criminoso comprometam tudo e a coloquem em perigo. Céus, em certo momento, Bárbara se diz LISONJEADA com os elogios e provocações do psicopata, para vergonha alheia de Batman e da audiência. Mas onde eu estava? Ah sim. FODEM. A Batgirl não aceita ser retirada do caso e ataca o cavaleiro das trevas no telhado, tentando acertá-lo. Ela o joga no chão e fica em cima dele. Eles se encaram por 5 segundos e se beijam. Em menos de 10 segundos ela já está tirando a roupa e eles praticam o coito lá mesmo. E o Batman? O ninja mestre do autocontrole que é amigo do comissário Gordon há anos e provavelmente viu Bárbara (FILHA de Gordon) crescer? Ele pratica o coito mesmo sem dizer nada. Imagine ele colocando uma bat camisinha sem pensar nas consequências, ou sem pensar se o que ele estava fazendo era errado (tipo, transar com a filha novinha e confusa do seu amigo em cima de um telhado e vestido de morcego. Você sabe, algo que o Batman faria.).
E depois que os dois fazem sexo, Bruce se afasta de Bárbara. A Reação dela? Ela liga insistentemente para ele, preocupada só com o fato de ele não atender suas ligações, dá pitis e faz escândalos em seu local de trabalho (como civil!). Bárbara, basicamente é rebaixada a uma mulher impulsiva, dependente e fraca, que não consegue controlar suas próprias emoções. Bela forma de empoderar a Batgirl, cavalheiros.
Mas enfim, o dispensável prólogo da Batgirl acaba e, após um fade out, vamos para o segmento da Piada Mortal do título. OK… Vamos lá.
Eu vou comparar com a obra original sim
“Uma obra deve se sustentar isoladamente”. “Livro é livro, filme é filme”. “Batman vs Superman é um ótimo filme.” Eu concordaria com estas frases em qualquer situação, menos nessa. Vamos lá: eu não me importo com as mudanças feitas em relação aos quadrinhos em, por exemplo, Batman vs Superman (“o batman não mata!” “Lex Luthor não é assim nos quadrinhos!”) porque eu sei diferenciar as mídias. Eu estou aberto a novas interpretações sobre os personagens. O filme tenta fazer algo diferente. Mas como fazer isso em A Piada Mortal, se o próprio filme, na sua proposta de ser uma animação quase que quadro a quadro do original (me refiro a segunda metade dessa animação) insiste em me lembrar constantemente da obra original? A separação das mídias é aceitável até certo ponto. Se eu ver uma imagem que evoca outra já existente, meu cérebro inconscientemente vai associar ambas. EU VOU COMPARAR. Não será de propósito, será porque eu não consigo não comparar algo que é refeito quadro a quadro da obra original. A animação praticamente me obriga a isso. E eu não teria problemas se fosse uma adaptação literal e fosse mais eficiente do que essa é.
Vamos a outro exemplo: 300, Sin City, e Watchmen – O Filme são adaptações muito fieis as obras originais e contam com transposições literais de cenas dos quadrinhos, também quadro a quadro. A compatibilidade visual de ambas me faz lembrar no mesmo instante dos quadrinhos, e, diferente de A Piada Mortal, eu apreciava ainda mais pois via como eles traduziram tudo aquilo PERFEITAMENTE. E nem me refiro a fidelidade em si. Quando eu vejo uma transposição desse tipo eu quero saber se ela foi necessária e teve o mesmo efeito que no quadrinho. O que não acontece aqui. Aqui é tudo um nível abaixo, tudo poderia ser MAIS. Mais tenso, mais equilibrado, mais criativo.
A animação
Vamos tirar o elefante da sala: a animação do filme é fraca. Me refiro a forma como ele é animado. Eu sei como é difícil fazer uma animação, ainda mais com o orçamento menor que essa deve ter tido (até por ser classificação 18 anos), mas se ela prejudica a narrativa, não tenho o que fazer senão criticar. Vamos começar com a “atuação”. Kevin Conroy e Mark Hammil (o Luke Skywalker), dubladores da série animada de Batman e Liga da Justiça, retornam para dublar Batman e Coringa, respectivamente. Ambos fazem um grande trabalho, que não pode ser totalmente apreciado justamente pela qualidade da animação. Os desenhos simplesmente não transmitem a emoção passada pelas vozes dos atores. É como se a marionete usada pelos atores estivesse com defeito… o que causa inexpressão nos desenhos, que não condizem com a intensidade das vozes.
Tem também o traço da animação. Falta detalhe. Falta ser mais sombrio. O traço da hq original chama atenção justamente por construir, junto com a coloração da mesma, uma atmosfera de tensão e angústia. Com o estilo de desenho usado na animação, não se alcança esse tom. Ele consegue ser eficiente em algumas poucas partes, mas no geral, soa tudo incongruente, com conflitos de tons. Há, inclusive, uma sequência musical. Nos quadrinhos, a sequência era doentia por ser vista justamente pelos olhos de Gordon. Na animação, o coringa a canta “diretamente pra nós”, quase quebrando a quarta parede. A cena é tudo que não deveria ser. Ela é divertida. Então, quando a sequência musical acaba e retornamos ao evento traumático que estava acontecendo temos um choque de tons, deixando uma estranheza não pretendida.
Dois filmes em um
Como A Piada Mortal isoladamente não alcança o tempo mínimo requerido para ser considerado um longa (em torno de 70 minutos), o prólogo envolvendo a Batgirl está lá para “engordar” a metragem da obra. Já vimos que a história não funciona. Então temos uns 30 minutos da famigerada ~encheção de linguiça (já que a história não acrescenta em nada aos personagens, muito pelo contrário, subtrai.)~ e então pulamos para A Piada Mortal. O problema é que o prólogo tem seu próprio formato e ritmo, e quando mudamos no meio de tudo para uma abordagem completamente diferente em estilo e substância, rola não só uma estranheza, como também uma sensação de desgaste.
É possível ser fiel e inferior ao mesmo tempo?
Ao final desse “filme”, vejo que sim. A história original é dramática e tensa. Aqui, soa episódica e abrupta. Falta emoção. Na intensidade da animação, na direção, na trilha sonora (que é escandalosa em todos os momentos errados). Eu me surpreendi pois, apesar da história estar lá, quadro a quadro, eu não esboçava emoções fortes em relação a tudo o que acontecia na tela. A maior delas foi referente a cena de “abuso” contra Bárbara, que cumpre seu papel de provocar desconforto. Mas também, se não provocasse…
É o que dizem mesmo, é mais difícil filmar um roteiro quando ele já é bom do que transformar um roteiro ruim em uma boa obra. Fidelidade não é copiar as mesmas imagens de uma Graphic Novel famosa. É captar a essência. E infelizmente, não senti isso aqui. Temos uma obra que não é tão eficiente para quem nunca leu os quadrinhos nem para quem já leu. A falta de ritmo e problemas na animação comprometem tudo e as palavras do mestre Alan Moore não tem o peso necessário. As imagens estão lá, mas você sente algo de errado.
E sentado na primeira fila de uma sessão lotada de fãs, presenciei a icônica e derradeira piada mortal do título -um dos pontos-chave da longínqua relação do Cavaleiro de Gotham com o Palhaço do Crime- com uma irônica sensação amarga. E nos segundos silenciosos que seguiram na sala, enquanto os créditos rolavam, pude sentir que eu não era o único.