#RochasEmDebate – Diferentes telas, mesmas projeções.
Os últimos meses foram de conquistas significativas para os profissionais negros – especialmente atores e atrizes – no mercado audiovisual brasileiro. Na Record, grande parte do elenco da sua novela “Escrava Mãe” é formada por eles (ainda que a escalação seja inevitável em uma novela que tem a escravidão como temática central); Na Globo, o casal Taís Araújo e Lázaro Ramos protagoniza “Mr. Brau” (ainda que o viés cômico da série reforce o discurso caricato e histriônico que permeia a representação televisiva) e recentemente foi anunciado que a novelinha teen “Malhação” terá, pela primeira vez após 21 anos de existência, uma atriz negra como protagonista (ainda que tardiamente, é um avanço).
A democratização do mercado é perceptível, apesar dessa mudança ser controversa e vir acompanhada de um rodapé de concessões em letras miúdas e de difícil compreensão. O que há tempos atrás era raro aos poucos tem virado “normal”, ainda que a passos lentos e artifícios questionáveis.
Uma das principais mazelas do Brasil é que grande parte dos seus tabus são construídos por olhares míopes de interlocutores limitados em uma sociedade idealizada. Ruir essas estruturas e remodelar as partes constituintes de um país genuíno e verossímil é uma questão de: posicionamento político (o que não significa partidário), consciência artística e resistência generalizada.
No dia 30 de maio de 2016 o jornalista Ricardo Feltrin publicou em sua coluna no UOL, uma matéria sobre a escassez de atores no mercado televisivo. “Globo vive crise de falta de atores; produção “caça” elenco até na internet” era o título do texto (http://tvefamosos.uol.com.br/noticias/ooops/2016/05/30/globo-vive-crise-de-falta-de-atores-producao-caca-elenco-ate-na-internet.htm). Ao longo dos parágrafos, Feltrin fala da incansável repetição de atores e da falta crônica de crianças e adolescentes. Mas o que mais chamou minha atenção foi à afirmação de que há escassez de negros. Sim, segundo os dados levantados pela matéria, é muito oferta e pouca demanda.
Antes mesmo de concluir a leitura, comecei a refletir sobre o assunto…
Numa nação de berço esplendido negro (ainda que a História tenha feito questão de apagar nossas raízes ancestrais) refletida na predominância da sua população (mesmo que a maioria ainda negue a descendência), atribuir a pouca presença de atores e atrizes negras a frente das câmeras, seja na TV ou no Cinema, por falta de material humano, tem legitimidade?
Há uma pluralidade no mercado de atores e, claro, que a etnia jamais deve prevalecer ao talento ou aos critérios artísticos de determinada obra, conforme o argumento raso do discurso daqueles que insistem em amenizar a gravidade do assunto. Os grandes cernes da questão são os processos de escolha por trás da visão superficial de nós telespectadores, e a inexistência de um equilíbrio igualitário entre as vozes. O texto do UOL revela que os profissionais oferecidos pelas agências são preteridos pela Globo e, consequentemente, pelas demais emissoras. A existência de um padrão estético, que privilegia traços específicos, tons mais amenos e uma miscigenação invertida, faz com que a representatividade dos negros nas telas do Brasil e do mundo (em uma escala macro) perca consistência e validade.
A supremacia do olhar narrativo branco seria um dos agentes ativos da repetição de vicissitudes e da pouca representação real de “Brasil” nas narrativas audiovisuais do nosso cinema?
Com o domínio de personagens de fenótipos e “perfis” moldados em uma conjuntura eurocêntrica, caucasiana, instituídos desde a época da escravidão, a presença de atores e atrizes negros no vídeo é significativamente reduzida e restrita a funções que fortalecem o discurso de segregação naturalizada e privilégios do opressor. Quando a representação do negro em qualquer que seja o produto artístico fica restrita a senzala, ao quarto de empregada, ao baile funk, as ladeiras da favela, as quadras de escolas de samba e suas mulatas-exóticas-fetiches, limitam-se não apenas a oportunidade de trabalho e o reconhecimento profissional, como também a construção consciente de uma identidade cultural.
Uma das sequelas desse recorte enviesado na cinematografia brasileira pode ser ilustrada pelo filme “Mundo Deserto de Almas Negras” (https://cinemacao.com/2016/06/19/critica-mundo-deserto-de-almas-negras-2016/), que estreou nas grandes salas de cinema no mês passado. O filme do cineasta Ruy Veridiano parte de uma premissa que de imediato provoca estranhamento no grande público. Nele, os negros pertencem a alta sociedade e centralizam o poder, enquanto os brancos são marginalizados e compõem as periferias. Tendo a cosmopolita cidade de São Paulo como pano de fundo, o diretor subverte a projeção predominante dos filmes nacionais expondo a farsesca e vulnerável realidade do nosso país, vendida no próprio país e no mercado internacional.
O mais irônico é que todos os louros de “autenticidade” que recaem sob o longa metragem são oriundos não de uma imaginação surrealista e fértil (que de fato existe!), e sim de um olhar sensível e plenamente crível de uma sociedade invertida, regada de preconceitos e acostumada em ver projeções superficiais, mesmo não se reconhecendo em seus discursos.
Colocar o negro no topo da pirâmide e conceder-lhe o protagonismo social, político, econômico e cultural inexistente nas narrativas cinematográficas é um encontro revelador com o que realmente somos!
Em um de seus famosos livros, “A identidade cultural da pós-modernidade”, Stuart Hall faz uma citação interessante ao crítico cultural Kobena Mercer:
“a identidade cultural somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza”.
As palavras do crítico britânico sintetizam o atual momento vivido pela indústria cultural brasileira. Onde os mecanismos que precedem os processos criativos estão em uma crise generalizada, e tal ruptura só se faz possível por esse deslocamento de uma zona de conforto estática e harmônica. Quando a identidade é compreendida e posteriormente formada pelas inúmeras variáveis que permeiam o meio externo e o interno de cada indivíduo, as projeções passam a ser questionadas como devem ser. Sempre!
Se reconhecer igualmente como parte integrante do todo é fundamental no processo de construção da identidade individual e coletiva do indivíduo. Ter consciência de que o exótico não é você, e sim aquilo que fazem questão de mostrar e legitimar a todo instante que “você é!” e que “isso não te pertence!”, é o primeiro passo para reconhecer as diferenças, ampliar os olhares e saber que como narrou Zezé Motta lindamente no primeiro capítulo de “Escrava Mãe”, “toda história tem dois lados, duas cor”, mesmo que o seu lado seja o da alma mais marcada e da cor mais invisibilizada.