Revisitando 'Freaks', o Cult proibido por trinta anos na Inglaterra - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
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Revisitando ‘Freaks’, o Cult proibido por trinta anos na Inglaterra

Ousadia: 1. Característica ou particularidade do que é ousado; que possui valentia ou coragem; arrojo ou coragem. 2. Falta de prudência; realizado sem reflexão; imprudência ou temeridade.

Basicamente é assim que o Dicionário Aurélio define o verbete. Para sétima arte, ser ousado pode significar tanto benção quanto ruína. As duas coisas aconteceram com Toddy Browning, diretor americano que produziu Freaks (1932), um dos primeiros filmes polêmicos do cinema americano.

Freaks (ou Montros como foi batizado no Brasil) seria o terceiro filme da série Trash Freak do Cinem(ação). Um amigo meu, grande cinéfilo, me indicou a película sob a pecha de ser um filme que ficou proibido por mais de trinta anos na Inglaterra. Confesso minha ignorância, por nunca ter ouvido falar no filme, e por isso, imaginei algo de gosto controverso como ‘Cannibal Holocaust’ (1979) ou ‘A Serbian Film’ (2010). Porém, Freaks não é um filme de ultraviolência, mas sim uma belíssima crônica cinematográfica.

A história se passa num circo de horrores, um “entretenimento” muito popular na Europa até meados da metade do século passado, onde se exibiam ao público pessoas afetadas por problemas genéticos, de má formação fetal e deficientes físicos. A partir desse cenário, se desenvolve a história de Hans (Harry Earles), um anão com aparência infantil que se apaixona perdidamente pela trapezista Cleópatra (Olga Beclanova), a mulher mais bonita do circo e sem nenhuma deficiência física.

Cleópatra esnoba Hans e trata mal todos seus companheiros de circo. A história muda depois que é descoberto que Hans é herdeiro de uma grande fortuna e Cleópatra em conluio com seu amante, o engolidor de espadas Hércules (Henry Victor), armam uma trama para se casar com Hans e tomar sua herança. Subestimados pelos vilões, os artistas do circo de horrores percebem todo o plano e se imbuem de alertar Hans da enorme enrascada. O desenrolar e o clímax dessa trama se revelam fortemente icônicos até hoje.

 

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Freaks inverte a ordem do que seria o esperado para um telespectador comum dos anos 30. Toddy Browning inseriu uma mensagem impactante para a sociedade daquela época. Uma bela parábola, disfarçada de filme de terror, com a clara intenção de dizer que a degradação moral é superior a qualquer deformidade física. O diretor consegue o feito indo além do romance e inserindo histórias incidentais, que mostram os ‘monstros’ como pessoas comuns.

O flerte das jovens irmãs siamesas. Todos do circo se reunindo para acompanhar o parto da mulher barbada. Pessoas sem membros praticando coisas cotidianas como fumar um charuto sem ajuda de ninguém. O amor de três irmãs portadoras de macrocefalia por sua mãe de criação, que as adotou desde pequena quando foram jogadas no circo. A dignidade, respeito e amizade de todas aquelas pessoas excluídas são muito tocantes.

Estamos falando dos anos 30, o auge da pseudociência de Eugenia, de nomes como o alemão Josef Mengele, que afirmava abertamente que existiam raças superiores a outras. Como então um cineasta poderia se atrever a mostrar que deficientes físicos e mentais poderiam viver como pessoas comuns e não como aberrações? Boa parte da família tradicional euro-americana ficou chocada em ver aquelas pessoas saírem de circos de horrores… para atuarem como protagonistas num dos  maiores entretenimento da época: o cinema.

Era muita ousadia.

 

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Freaks foi um fracasso de recepção e bilheteria. O filme custou cerca de 320 mil dólares, valor expressivo para época, e arrecadou pouco mais de 160 mil dólares. A produção que era para ser uma resposta para o sucesso Frankstein, produzido pela concorrente Universal, tornou-se uma enorme dor de cabeça para MGM.

A maioria da crítica dos jornais da época detonaram a obra. Como desgraça pouca é bobagem, se propagaram uma série de boatos e lendas urbanas. Diziam, por exemplo que o filme tinha sido responsável por uma mulher ter sofrido um aborto espontâneo num cinema, o que obviamente nunca foi comprovado. Com a repercussão negativa, o filme foi retalhado e teve quase um terço de seu tempo original censurado. Alguns estados proibiram sua veiculação em cinemas, o mesmo aconteceu com a Inglaterra.

Toddy Browning, um dos mais promissores diretores da época e que um ano antes tinha produzido o sucesso Drácula (1931), nunca mais se recuperou. Seus trabalhos foram minguando até cair de vez no ostracismo. O devido reconhecimento a Freaks iniciou-se três décadas depois, nos anos 60, quando estudiosos de cinema revisitaram a obra e pediram ao governo inglês que retirasse sua proibição de exibição, o que ocorreu de fato.

Atualmente, Freaks é visto por grande parte da crítica como Cult. Em 1994, Freaks foi selecionado para preservação pela United States National Film Registry, sendo reconhecido patrimônio americano “culturalmente, historicamente ou esteticamente significante”. A película se transformou numa espécie de ícone pop. Cantores como David Bowie e Frank Zappa produziram trabalhos tendo o filme como fonte de inspiração. Freaks, de antiga obra renegada, ganhou até paródia num episódio especial dos Simpsons.

…E a coluna do Freak Trash do Cinem(ação) acabou ficando sem filme essa semana. Por que o lugar de Freaks não é ao lado de Sharknado, Tomates Assassinos, O Monstro do Armário ou Palhaço Assassinos do Espaço. O Lugar de Freaks, e da ousadia de Toddy Browning, é num outro espaço do cinema. A prateleira de Vertov, Welles, Bergman, Fellini, Kubrick e outros  que ousaram quebrar paradigmas.

 

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