Crítica: Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 1
Uma obra de arte é um retrato de seu tempo, e quanto mais elementos ela carrega consigo, mais rica se torna. Em tempos de consumo irrefreável de produtos cada vez mais vazios, é sempre positivo ver que um grande blockbuster possa vir carregado de nuances e detalhes que fazem referência à política e à sociedade atual.
Baseado no terceiro de uma série de três livros desenvolvida por Suzanne Collins, o filme repete a fórmula já utilizada nas grandes franquias adaptadas de livros, e separa o último em dois longas. Dirigido novamente por Francis Lawrence, “Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 1” traz o elenco já conhecido do grande público, com Jennifer Lawrence, Liam Hemsworth, Josh Hutcherson, Elizabeth Banks, Philip Seymour Hoffman, entre outros.
Após iniciar a franquia com uma grande crítica aos reality shows, o terceiro e penúltimo capítulo da série se aprofunda ainda mais na trama política e chega a abordar a criação de personagens para propagandas políticas, e as escolhas do diretor são bastante inteligentes para alcançar este objetivo. Podemos reparar, por exemplo, que o filme não se preocupa em mostrar o que acontece com Peeta (Hutcherson) na Capital, o que não apenas nos restringe a ver a trama com os olhos de Katniss, mas também abre dúvidas quanto à maneira como ele vem sendo tratado pelos poderosos da capital, o que cria um ponto oposto ao que ocorre com Katniss, cuja transformação “oficial” na representante dos rebeldes do Distrito 13 é acompanhada pelo espectador, mas poderia gerar as mesmas dúvidas em quem acompanha apenas os vídeos da jovem transmitidos pelo grupo.
Utilizando uma paleta de cores mais dessaturada, Francis Lawrence consegue tirar o brilho colorido que antes víamos na Capital, entristecendo a narrativa, que ganha um clima de guerra. Entre todas as escolhas inteligentes do roteiro, que não se rende às cenas de ação e faz do longa uma trama bastante centrada em artimanhas políticas, está o fato de não haver conversas expositivas demais: tanto a conversa de Katniss (Lawrence) com Gale (Hemsworth) sobre o fato de ela se compadecer deste quando ele se mostra frágil, quanto as falas de Effie (Banks) sobre a dura homogeneização dos habitantes do rebelde Distrito 13, não são expositivas demais, como muitos roteiristas não hesitariam em fazer, mas carregam duas críticas importantes a questões da trama. No caso do primeiro diálogo citado, compreendemos melhor como Katniss é uma personagem movida por suas paixões, muito mais que por decisões políticas: tudo o que ela faz é para proteger quem ela ama, de forma a se sacrificar por eles, e por isso ela dificilmente se doa a Gale, porque ele sempre se mostrou forte e independente, diferente de Peeta e Prim. No caso do segundo diálogo, vemos uma crítica à maneira como o Distrito 13 se formou: um ambiente de “extrema esquerda” que valoriza o coletivo em detrimento da individualidade de cada um, em oposição ao governo da Capital, que se mostra semelhante à “extrema direita”, cujo princípio está no estado soberano e na valorização da individualidade, mas que cria disparidades sociais gigantes, aqui representadas pelos distritos. No caso de Effie, temos certeza de que se trata de uma escolha dos produtores do filme, já que a personagem não existe nos livros.
Todas estas questões não poderiam ser mais atuais. No entanto, não acredito que a franquia venha a incentivar algo semelhante ao comunismo, já que o longa não apenas faz parte de um ambiente profundamente capitalista e imperialista como a indústria do cinema americano, como também foi criado por uma escritora estadunidense, cujo pai serviu a Guerra do Vietnã – que lutava justamente contra um governo “comunista”(e ainda se baseava na propaganda feita por meio de filmagens, como vemos na trama).
Podemos citar, também, o fato de o longa possuir pequenos momentos de humor que quebram a tensão sem nunca parecerem inorgânicos à trama. Com boas escolhas e uma tensão adequada ao que a trama se propõe, o longa ainda encontra tempo suficiente para desenvolver todos os personagens, fazendo de todos eles seres tridimensionais e repletos de sentimentos e características interessantes – e vale destacar a atuação de Julianne Moore e do saudoso Philip Seymour Hoffman, que trazem profundidade a seus personagens mesmo que eles sejam bastante misteriosos.
Em meio a tantas adaptações de séries literárias, muitas vazias e repletas de clichês, é uma pena que obras com a profundidade de “Jogos Vorazes” não sejam tão constantes.