"Eu me lembro": Os devaneios poéticos dos nossos 'demônios'.
Artigo

“Eu me lembro”: Os devaneios poéticos dos nossos ‘demônios’.

“Lembrei de tanta coisa…”.

 

Em um pretérito não muito distante, já havia sido apresentado em alguns cinemas alternativos da capital baiana – ainda que de maneira blasée e à deriva – a essa pílula nostálgica, que é o longa-metragem “Eu me lembro”. Mas, por questões britânicas de Big Bang não pude conhecê-lo.

 

Não se faz mais Cine Guarani, Cine Jandaia como antigamente.

Pior, extinguem-se! (uma única mão enumera sua existência na cena)

 

O filme do cineasta baiano Edgard Navarro nos conduz a uma imersão autobiográfico-ficcional nas lembranças do jovem Guiga.

A trajetória da personagem é poeticamente narrada pela subjetividade dos seus olhares diante da vida e dos mundos.

O olhar pueril da criança (Danten Melo), onde tudo é a imaginação do real, suposições silenciosas… O olhar do adolescente (Victor Porfírio) que reage e constrói sua persona nas influências referenciais ao seu redor… E, por fim o olhar amadurecido do homem, agora na janela dos anseios contestadores, das buscas infinitas e das viagens vertiginosas do que se foi, do que se espera e do que realmente se deseja ser.

 

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“… Do auto-flagelamento pós-masturbação infantil… Do abatedouro compartilhado com a cria… A praga ao vento levianamente rogada…”.

 

As memórias afetivas que aconchegam são as mesmas que enclausuram e atormentam, pelo que se viveu e não se pode reviver ou mudar.

 

“… Um homem de verdade tem que lidar com os próprios demônios…”.

 

As aspas cortantes do patriarca da família, Guilherme (vivido por um visceral Fernando Neves) simboliza o que somos na nossa gênese.

A incerteza fertiliza o abstrato e a razão decifra (vã) o concreto.

Os demônios são as próprias lembranças!

O descompasso criança-adolescente-homem catalisa e entre devaneios entra em catarse.

Nascemos – e morremos! – endemoniados.

 

“Não costumo acompanhar filmografias seguindo uma ordem cronológica, mas sim a linha natural das descobertas”.

 

edgard sr do tempo

 

Ouso definir nosso cineasta como um Senhor do Tempo.

(ainda que repugne o verbo)

Há uma encruzilhada temporal em sua filmografia, que me instiga, me inquieta… Me fazem otimista nem que seja até o tempo do próprio filme.

O “Superoutro” é o futuro prometido e “Eu me lembro” o passado eterno.

 

eu me lembro cartaz

 

“O cinema baiano não é só ladeira e a os planos baixos de uma cidade, em um emaranhado circense de personagens caricatos e comportamentos pitorescos (…)

E os atores baianos não são interpretes em folha de papel carbono”. 

 

A metáfora do encontro se finda na metalinguagem da arte.

Um encontro entre Guiga (que poderia ser eu ou você) com ele mesmo (que poderia ser nosso próprio Narciso).

O eclipse entre criador e criatura no universo em que ele dirige sua própria história e revê – em olhos e alma – suas singulares e universais lembranças.

 

Em paralelo ao utópico rito de passagem uma época é retratada em paralelo aos retratos individuais ali inseridos. A submissão feminina da matriarca Aurora (Arly Arnaud), a religião desde sempre mais sinônima do controle punitivo das ações do que uma expressão da fé genuína, e o ato sexual.

Os sexos, as genitálias, censurados pela gentalha…

CÚ do próprio buraco negro do tempo que em um ato de sanidade plena arreganhou-se para o mundo.

 

“Lembrei de tanta coisa… Do que não queria, mas me foi inevitável não recordar…”.   

Obrigado Sr. Edgar.

Suas lembranças são as minhas e seus demônios são os nossos!

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