‘Incômoda’: Quando o cômodo da casa vira o verbo da existência.
“O artigo é indefinido, mas define bem a terceira pessoa do singular. O CNPJ da empresa é ‘um laranja’ do que mais adiante ele enxergaria ser vossa primeira pessoa do singular. E a troca não é simplesmente de posição, é de posicionamento”.
Um funcionário de uma transportadora surge no apartamento de Matias com a intenção de trocar a cômoda de posição. Matias se nega a acreditar no absurdo da ideia que tenha contratado tal serviço. Falta-lhe coragem para realizar mudanças substanciais em sua vida.
O argumento do filme, a primeira leitura, pode nos levar a uma película surrealista. Mas, se deixarmos as análises literais das coisas na cômoda do nosso cérebro, nos permitiremos perceber a simbologia e a significação metafórica da história e suas alegorias.
IN. CÔ.MO.DA
O titulo por si só já ‘denuncia’ essa ambiguidade de significados.
A comodidade é da cômoda – objeto inanimado de um dos cômodos – ou da maneira cômoda e inerte como o personagem central se acostumou e condicionou (ou seria foi condicionado) a viver?
“Quando eu era criança, nas minhas férias no interior… Aquele ritual pós-banho se repetia. Minha tia colocava a blusa por dentro do short e fazia questão de subir aquelas vergonhas até a boca do estômago. Não contente, finalizava a sessão vintage, deixando meu cabelo como um capim lambido pela vaca”.
Matias (João Roncatto) fora vítima do mesmo estupro!
Sim! O comodismo existencial pode ser uma herança maldita das figuras maternas. Ditados antigos como tal pai, tal filho nem sempre são motivo de orgulho. O suposto ‘bem’, pode fazer ‘mal’. Maniqueísmos não si aplica.
O roteiro do curta metragem assinado por Flavio Reis e dirigido a quatro mãos por ele em parceria com o diretor Randolfe Camarotto consegue metaforizar muito bem a passividade cotidiana das pessoas diante das coisas, do mundo e de si mesmas.
Incredulidade de um e reflexo invertido do outro.
O tom antagônico dado ao funcionário – muito bem defendido por Murilo Meola em uma alternância de sadismo e ironia – no ‘embate’ com seu cliente, é regido pelas forças citadas acima e concede ao curta nuances de mistérios e referenciais da psiquê, em conjunto com a cirúrgica trilha sonora instrumental.
“O recurso da inversão potencializa o conflito interno do personagem e embaralha as ideias de um público mais desatento e acomodado”.
O filme não acomoda, e retrata um dos males crônicos do mundo moderno, que acompanha as primeiras pessoas do singular em forma de nós.