‘Getúlio’: O recorte de uma ERA e A humanização de um MITO.
“Eu quero… Ser Getúlio Vargas. Enrolar-me no próprio latim. Engasgar com o próprio discurso. E morrer com a própria bala’.
Estranhamento! Foi o senti quando descobri ao ler a primeira notícia sobre o filme que contaria os últimos – e tortuosos – dezenove dias da vida de um dos presidentes mais emblemáticos que nossa República – apesar de em algumas páginas do livro a ditadura ainda reinar – já teve, se chamaria coloquialmente de ‘Getúlio’.
Sim, porque Getúlio por Getúlio, embora o nome já leve a subentender que não é qualquer um (não é mesmo!), dá ao título do filme um tom muito impessoal, ‘coloquianês’ eu diria e bandeira branca perante a grandeza e marca histórica que acompanha vossa excelência.
É uma análise sintática. A sílaba tônica da oração é Vargas. O ‘sobre’ se sobrepõe ao nome. E a nomenclatura de toda uma ERA, pela linha natural do apelo comercial, se refletiria no título do filme de João Jardim.
Mas, como informa a própria sinopse, o filme relata a intimidade – essa palavra é importante para entender o batismo – do ‘pai nosso’ (?) dezenove dias antes do fatídico dia 24 de agosto de 1954.
Aí está o nervo da carne morta!
A premissa cinematográfica é narrar 19 dias de uma vida e não os 15 anos de uma ERA. O que seria totalmente inverossímil e raso, transpor em pouco mais de uma hora de película os meandros (não todos, claro!) de um governo que perdurou por décadas.
Quando evocamos alguém – autoridade política ou não – simplesmente pelo nome, sem pronomes, sem formalidades, levamos à tona a existência de uma relação informal, mais direta, nesse caso entre o mito e o palanque eleitoreiro (hoje, o mito mudou de figura e bandeira; e os palanques…).
“… porque o título do filme reflete o objetivo da película.”
Em ano eleitoral então, é necessário cautela e opinião formada para não cair nas armadilhas ideológicas travestidas em arte de entretenimento.
Que eu não sou fã de biografias escritas é bola cantada, e esse preterimento se estende as narrativas audiovisuais também. Biografia, política… O roteiro pende (é probabilidade não regra) a receita fácil do melodrama. Câmera lenta, o sofrimento da personagem central e a música triste na trilha.
“Filho, pai, padrinho… O parentesco é item indispensável da cartilha partidária?”
A humanização de Vargas em ‘Getúlio’ é um dos grandes trunfos do filme.
Humanizar personagens é tarefa das mais espinhosas na arte de roteirizar. Tratando-se de uma figura icônica da história política do nosso país, a tarefa fica ainda mais difícil, visto o risco que se corre em – mesmo que involuntariamente – bandeiras sejam levantadas e camisas partidárias sejam vestidas.
Numa época onde o maniqueísmo impera na ficção e na realidade, a desmistificação do BEM X MAL, é rara e digna de aplausos.
Getúlio, o pai dos pobres, o presidente do povo, criador da Petrobras, do salário mínimo, e de outros benefícios à classe trabalhadora é o mesmo Getúlio que rasgou duas constituições, cancelou uma eleição, e que não sabia de nada.
Não esqueçam que ele gosta de ser interpretado. E que bom que o João, fez valer essa vontade.
“Foi gratificante ver Tony Ramos sem aqueles sotaques ‘nobres’ de grego, italiano…”
… Foi extasiante vê-lo impecável, em plena forma de expressões, gestos e olhares. Não consigo imaginar outro ator para realizar essa ressurreição histórica.
E é aí, na exímia atuação do seu elenco outro ponto forte da narrativa. Além de Tony, somos agraciados com uma Drica Moraes espetacular, como já nos acostumamos a vê-la.
Sua Alzira (filha do presidente) é a única figura feminina em meio aos inúmeros homens que detinham o poder naquela época. Drica faz com que sua Alzira transite pelos meandros do jogo político sem perder a força e a altivez. Entre o papel de filha e cidadã ela é o alivio do nosso presidente.
Merecem menção honrosa: Clarisse Abujamra (Darcy Vargas – mulher) em uma pequena participação de poucas e certeiras falas, Marcelo Médici (Lutero Vargas – filho), Adriano Garib, Alexandre Borges (que diferente dos seus últimos papéis na TV, se sai bem como o opositor Carlos Lacerda).
Só fiquei incomodado com a atuação de Thiago Justino (Gregório – fiel escudeiro e chefe da guarda presidencial). Linear e excessivamente rápido em alguns momentos.
‘Getúlio’ é mais um bom filme político do nosso cinema, que traz ao povo um importante recorte da sua história, e que confirma minha tese de que Getúlio não morreu pela bala do revólver que ele mesmo disparou contra si, mas pela corda que ele deu aos seus ‘aliados’ a fim de fortalecer ainda mais a sua e ficar na história eternamente.
“Político é assim, não dá ponto sem nó”.