‘Pau Brasil’: As raízes e o sopro de renovação do cinema baiano.
Esse gripho é um estranho silêncio, um grito compartilhado, uma empatia ao desconhecido, um epitáfio em memória ao sorriso rubro-negro da flor leonina…
Uma semana antes de assistir ‘Pau Brasil’, li a crítica assinada por João Carlos Sampaio no jornal A Tarde, sobre o filme. Não costumo ler críticas já publicadas dos filmes que vou comentar. Mas, nesse dia quebrei a regra, e acrítica do J
oão foi à única que li antes de compartilhar minha experiência com a obra em questão. Ao final da leitura, as palavras dele só aguçaram ainda mais minha vontade de assistí-lo no cinema. […]
A sexta-feira baiana – tradicionalmente branca – ficaria de luto. De manhã entrei no facebook e vi a postagem de várias pessoas incrédulas com a morte do João. Não acreditei! A notícia me causou uma estranheza, uma descrença com a vida e sua máxima byroniana de que pra morrer, basta estarmos em pleno gozo.
Não o conhecia pessoalmente, não era seu amigo, não fora aluno de nenhuma oficina, não era colega de redação… Era simplesmente um ‘amigo’ de facebook, um mísero número. Mas, sabia quem ele era, o importante papel que desempenhara para o nosso cinema, para o jornalismo, e senti sua partida como se fosse um barco do meu cais.
à João Carlos Sampaio.
Saudade daquele silêncio típico do interior pós meio dia. Das poltronas vazias e de um cinema essencialmente baiano pulsando na tela.
“Meu maxilar estava cansado de rir das comédias nacionais que assistira anteriormente. ‘Julio Sumiu’ (Lilia Cabral como Sassá Mutema) e ‘Copa de Elite’ (Aquilo era mesmo cinema brasileiro?)”.
O título do filme – propositalmente ou não – por si só nos faz (ou pelo menos me fez) voltar ao passado. Fiquei nu, me pintei com urucum, dancei na chuva, prestei continência à tropa de gentlemans europeus (será que foi assim mesmo?) e finquei a bandeira na era do descobrimento.
‘PAU BRASIL’.
A matéria-prima que nos ‘batizou’ e a matéria-humana que resgata sinais de um Brasil Raiz, onde o povo é a moviola do progresso e suas ações o reflexo de uma ordem.
É nesse pequeno povoado – tão familiar e tão distante na mesma linha geográfica -, localizado em qualquer lugar do nosso vasto Brasil, que Fernando Belens conta a história de duas famílias que partilham da mesma realidade, da mesma opressão social, mas que reagem a essa estética crua e áspera de maneiras distintas.
Os homens rurais ali revelados são forças antagônicas de um mesmo clã.
Enquanto as semelhanças ficam no limite imagético do povoado, as diferenças adentram os lares e gritam diante à aridez da rua.
“Ser radical é tomar as coisas pela raiz. E a raiz, para o homem, é o próprio homem…”
A frase de Haroldo Campos, que pincei do seu texto ‘Uma Poética da Radicalidade’, funcionou como um retrato literário certeiro, que me fez automaticamente pensar nas raízes – não simplesmente pelo caráter regional da película – e na representação do homem no filme.
Joaquim e Nives (Osvaldo Mil e Bertrand Duarte, irretocáveis na construção das suas personagens) são homens, porém as raízes que ficam e movem cada um deles são pertencentes a solos distintos, que eles cultivam cada qual a sua maneira.
Enquanto Joaquim – a representação de uma brutalidade ignorante – lida, a referência animalesca da ação é intencional, com a mulher e as duas filhas Dora e Beatriz (as seguras e entregues Milena Flick e Fernanda Belling) na base da repressão ‘cordeirizada’ em disciplina educacional. Nives – reflexo da sabedoria e da delicadeza paternal – cultiva uma relação de generosidade, amor e respeito para com o filho, que a vizinhança julga não ser legitimamente seu. Sentimentos abrangentes à mulher Juraci (Fernanda Paquelet, no trânsito certeiro entre a ardência do corpo e a proteção do instinto materno), que por amá-la tanto, permite que as raízes forasteiras desfrutem desse prazer nem que seja por uma breve passagem e que seu próprio corpo desfrute da contemplação divina de vossa existência.
Belens nos apresenta uma vastidão de tipos, de vidas. Os silêncios das personagens, desde o pequeno Alberico, passando pela mulher de Joaquim, deixando resquícios de medo e clausura nas filhas, em especial na futura candidata a beata Beatriz, até chegar à imensidão das próprias raízes.
A complexidade que acompanha cada personagem durante sua trajetória é ilustrada de maneira imagética na imagem de abertura do filme, e guiada pela presença constante de uma voz. A voz de Dona Leandra (Arany Santana, em entrega e loucura) é um lampejo de devaneios proféticos que dialoga com um invisível (o que não quer dizer inexistente), como uma força mística de uma riqueza ancestral que zela por todos.
Grãos de areia que juntos formam desertos…
Uma imensidão…
Além de entreter – sem cair nas fórmulas ocas e comerciais usadas a exaustão pela nossa indústria cinematográfica, relação similar a do cabresto imposto pelo Joaquim – o diretor faz da sua obra um mapa rico e aprofundado de estudo do ‘SER’.
Sociológico: Um pai que a todo instante crucifica o comportamento promíscuo e libertino da vizinha, mas que em contra partida abusa sexualmente das duas filhas. Atirar a pedra e quebrar sua própria vidraça. Condenar e cometer o mesmo ato impulsivo, instintivo do desejo e da carne.
Filosófico: Seria Joaquim um produto do meio? O todo justifica o indivíduo?
Psicológico: Por que tantos silêncios? Os olhares, a tortura do corpo e da matéria faz emudecer a alma?Fé que leva à religião ou fuga existencial que nos leva à religiosidade?
Vale ressaltar, que ‘Pau Brasil’ funciona como uma garrafada de renovação no cinema baiano. Pelo elenco local escalado para a produção, que aposta em renomados atores nos papéis centrais da narrativa, e ratifica a importância de oxigenar o gênero, apostando em jovens e promissores atores. E, a necessidade de mudar as paisagens, avançar o zoom, mostrar que Bahia não é só Pelourinho, Baía de Todos os Santos e as Águas de Iemanjá.
Obrigado a todos as raízes dessa floresta que ainda nos proporcionam “ver com olhos livres”. Sem imagens de sempre, sem todas as respostas, sem todos os porquês.