‘Os Sonhadores’: por mim, por eles, pelo sonho.
De ‘Berthô’ ao Sonho Glauberiano.
Fui até a minha caixa (que não é a de Pandora) – a minha é de plástico, branca, coberta de pop art da cabeça aos pés – e em meio a filmes e livros comecei a procurar pelo sonho (…) Um lapso de dejá vu me toma. Com a faísca riscada recordo a minha primeira ‘suruba’ com eles… Eles – ainda – não, os sonhadores, que mais adiante deixariam o sonho, se tornariam realidade, mas ainda hoje são seres (eles) imaginários.
Voltei aos festejos circenses do final de ano. Aquele banquete farsesco de sempre, que todos nós compartilhamos com os entes queridos.
Dessa vez uma mala repleta de filme dos mais variados gêneros e estilos. Fui escolher qual seria minha companhia de mais uma tarde mansa de interior.
Passa, passa, passa, passa, passa…
Eis que minhas mãos param e meus olhos se fixam na capa de ‘Os Sonhadores’. Não sei se: porque o sonho é parte inerente da minha persona desde pequeno; se foi as instigantes aspas do jornal londrino The Evening Standart que me fizeram querer sentir os arrepios de frisson erótico; ou as expressões sisudas e misteriosas dos três na capa.
Sem saber a resposta, comecei a ler o resumo do filme no verso. Ao chegar a interrogação que encerrava o texto, continuei com o filme na cabeça. Não tinha como ser diferente, assisti ali mesmo no anseio, da FOME, sem preparação, sem fome.
Quando assistimos a um filme e nada sai, é porque de fato nada sequer entrou. Filme bom, é aquele faz você ruminar. E Bernardo Bertolucci me fez colocar pra fora três alimentos vitais da nossa vida, e que nunca devem ser engolidos de vez, como uma dose de cachaça: o SEXO, o DESEJO e o SONHO.
O filme – baseado no romance ‘Os Inocentes Sagrados’ do escritor escocês Gilbert Adair – (littérature, cinéma, cinema, littérature), narra à história da tríade da juventude revolucionaria de 68, Theo, Isabelle e Matheew. Os dois primeiros são irmãos gêmeos, franceses, e partilham de uma relação intima regada a joguetes psicológicos. Já Matheew é um jovem americano recém chegado à Paris em intercâmbio para estudar francês.
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A paixão pelo cinema é a moviola do triângulo amoroso. Matheew – descobrindo as luzes da cidade à passos lentos e olhos azuis reluzentes – encontra Isabelle em frente a um cineclube parisiense. Minutos depois, Theo chega. Divergências cinematográficas à parte, uma relação erótica surge em um jogo de cenas, e sedução.
O cinema francês (o argentino caminha nessa mesma direção) exala um charme peculiar em suas obras. É uma sensualidade bruta e simples – sem o femme fatale de uma cruzada de pernas – que compõem o roteiro da maneira mais natural e orgânica possível. Um charme que falta as demais cinematografias, em especial a indústria hollywoodiana.
Sensualidade e erotismo são ingredientes que não faltam no roteiro (feito pelo autor do livro que originou o filme), e que foram muito bem explorados pela direção naturalista orquestrada por ‘Berthô’.
“Não é apenas o coito em si que desperta o tesão. O ‘banho à trois’ na banheira, o dançar desengonçado de Isabelle, a banana dividida em três partes iguais, o cigarro cambaleante nos lábios… Pequenas ações e gestos podem provocar uma ebulição de vontades.”
O filme ainda nos contempla com cenas clássicas da sétima arte. A metalinguagem é figura constante na narrativa, e através dela ‘Berthô’ consegue brindar o cinema com cinema. Entre as inúmeras referencias à Nouvelle Vague, destaca-se a antológica cena do Museu do Louvre no filme Brande à Part de Jean-Luc Godard, na qual Anna Karina, Sami Frey e Claude Brasseur apostam uma corrida.
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O choque entre sonho e realidade ganha contornos históricos com o contexto político e social que cerca os personagens centrais do filme. Choque entre povo e governo, protestos, bandeiras, gritos e clamores da Revolução Francesa em Maio de 1968.
Essa relação direta dos protagonistas com a militância e a verve revolucionária nos remete ao Brasil de hoje, onde desenha-se um processo de consciência e atitude para com as vergonhas nacionais, que infelizmente se perdera com o avançar das décadas.
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‘Os sonhadores’ nos faz sonhar – vale a redundância – com uma juventude politizada, onde se proteste tendo clara consciência do que e do por que.