Crítica: Invictus
Toda adaptação de um livro, que por si é baseado em uma história real, esbarra em uma grande dificuldade: mostrar de maneira orgânica todas as complexidades dos acontecimentos. No caso de uma trama política sobre um dos maiores líderes que o planeta já viu, a dificuldade é ainda maior. “Invictus”, baseado no livro “Playing the Enemy”, que depois mudou de nome, passando a ser homônimo do filme, pouco consegue vencer esta dificuldade.
Apesar de se vender como um livro que conta a história de como Nelson Mandela utilizou-se do rúgbi para unir dois povos da África do Sul, os brancos e os negros, o livro de John Carlin conta muito mais. O livro se aprofunda na trajetória de Mandela após sua saída da prisão, e explica detalhes das manobras políticas necessárias para o fim do governo do apartheid, além de contar detalhes de como era a vida dividida em um país cheio de raças e línguas.
Não seria um problema o diretor Clint Eastwood optar por focar somente na batalha de Mandela por um time de rúgbi vencedor, mas isso se torna problemático quando Eastwood opta por fazer de uma maneira extremamente mastigada e forçada. Em certo momento, um dos seguranças de Mandela pergunta sobre a família do presidente, apenas retoricamente, e então Mandela opta por não fazer sua famosa caminhada matinal, em um ato pouco convincente. Em seguida, o outro segurança afirma que o presidente sul-africano “não é um santo” e tem problemas de família “como qualquer pessoa”. Em outro momento da projeção, após Mandela explicar que os Springboks (time da África do Sul) precisam vencer a Austrália para ir às semifinais, outro personagem afirma: “então é muito importante que ganhemos da Austrália?”… por um momento pensei que Clint congelaria a cena para fazer desenhos na tela e mostrar o sistema de chaves dos campeonatos esportivos.
O filme também falha em mostrar três elementos que deveriam ser obrigatórios e passam despercebidos para quem não leu o livro (a maioria dos espectadores). O primeiro dos elementos é o medo que havia na população africâner (branca) com a chegada de um presidente negro: apesar de mostrar um personagem fazendo suas reclamações, em nenhum momento isso é detalhado como deveria para o entendimento da situação de confronto que havia entre os grupos étnicos. O segundo elemento é o esforço dos jogadores do time sul-africano em cantar o novo hino do país, cantado em línguas diferentes, como xhosa e zulu, além do inglês e africâner: o roteiro optou por suprimir tal esforço e fazer da canção do hino um elemento de surpresa, que não tem a mesma força. O terceiro elemento é a cena de um avião que passou próximo do estádio Ellis Park antes da final entre os Sprinkboks e os All Blacks, da Nova Zelândia, considerados até então um time imbatível: com o objetivo de também causar surpresa no espectador, o filme modifica a história e faz com que a guarda do presidente seja composta por pessoas mal informadas a respeito do planejamento do dia – afinal, a ideia de passar um avião acima do estádio foi ideia do próprio Mandela.
Mas não é só de coisas ruins que “Invictus” é feito. Há algumas cenas inspiradas, como a primeira do filme, em que Mandela passa por uma África do Sul literalmente dividida entre a dos brancos e dos negros: mesmo tendo diálogos clichês, a cena tem sua função. A entrada dos seguranças brancos em um espaço somente de seguranças negros da equipe da presidência da república é outra cena inspirada: além da tensão criada, a mise-en-scéne mostra um grupo de brancos, de maneira inédita, sendo cercado por negros que, pela primeira vez, encontravam-se com poder sobre seus ex-algozes.
Apesar dos personagens fracos para um filme, Morgan Freeman e Matt Damon se saem bem como Mandela e François Pienaar, o capitão do time, respectivamente. Os personagens são fracos porque pouco é mostrado sobre os passados deles, e são mostrados poucos elementos que os tornem mais do que figuras unilaterais (a briguinha de Mandela com sua filha é fraca). Aliás, Pienaar é mostrado como um líder pouco eficiente e aparentemente sem experiência (o que certamente não foi o caso na história real). Ao menos os atores conseguem segurar suas personagens, especialmente Freeman, que dá a Mandela um tom de voz seguro e cheio de sabedoria, sem nunca cair na caricatura.
No fim das contas, “Invictus” se segura muito mais devido à força dos acontecimentos, que fazem da reconstituição da democracia na África do Sul um exemplo para todos os países. Mesmo assim, o filme é pouco compatível ao livro original, e nada compatível à grandeza de Nelson Mandela e sua sabedoria e liderança.
ps: já havia sido publicada uma crítica deste filme aqui no Cinem(ação)
Nota: 3 Claquetes