DOENTES DE AMOR (2017) | O Bom e o Mal Uso do Clichê
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DOENTES DE AMOR (2017) | O Bom e o Mal Uso do Clichê

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a palavra ‘clichê’ aplicada em sentido figurado, tornou-se sinônimo de tudo o que já foi objeto de repetição excessiva e perdeu a originalidade. Assim, ‘clichê’ também pode significar uma ideia que se repete com tanta frequência que já se tornou previsível dentro de um dado contexto. No cinema costumamos aplicar o termo à situações onde os personagens têm suas ações facilmente previstas, como o casal que se beija sob a chuva, a dupla de policial, um bom e um mal, o vilão que explica seu plano ao herói e que está prestes a ser derrotado, dentre várias outras. Normalmente, a tendência é criticarmos esse tipo de situação, haja vista sempre buscarmos originalidade nos filmes que assistimos.

 

Pensado nisso, quando recebi o convite para a cabine de imprensa do filme “Doentes de Amor”, logo pensei que seria um filme cheio de ‘clichês’ me baseando apenas no título em português, que sinceramente achei bem ruim. Adiante, fui ler a sinopse que reproduzirei na íntegra: “O comediante paquistanês, Kumail, e a estudante de graduação, Emily, se apaixonam, mas eles encontram dificuldades quando suas culturas entram em conflito. Além disso, quando Emily contrai uma doença misteriosa, Kumail deve tentar resolver a crise com seus pais causada pelo conflito emocional entre sua família e seu coração”. Ok, temos aqui então uma comédia romântica que seria uma mistura de “Master of None”, série da Netflix e “Enquanto Você Dormia”, clássico ‘Cinema em Casa’ de 1995. Mas quando vi que Judd Apatow estava envolvido na produção do filme, pensei que pudesse ter algo além de uma simples comédia romântica… e felizmente tem.

 

O roteiro de Kumail Nanjiani e Emily Gordon é baseado na história real de ambos, que se conheceram numa apresentação Stand-Up de Kumail, onde a partir dali passaram  a ter dificuldades com as diferenças culturais e familiares, além da grave doença acometida por Emily. Assistir ao filme sabendo se basear em uma história real ajuda o público a se colocar naquela situação tão difícil, ainda que talvez seja uma realidade muito distante da nossa.

 

O que Kumail e Emily traz para a tela é uma história interessante pelo que ela é e pelo que ela representa. Não há grandes reviravoltas na trama. O filme começa de forma previsível e termina mais previsível ainda, mas isso pouco importa no caso. O importante nesse filme não é o uso do ‘clichê’ e sim como ele é usado.

 

Kumail (auto interpretado) e Emily (Zoe Kazan) formam um casal simples, como qualquer outro casal no mundo. Eles conversam sobre trivialidades, tem medos de se frustrarem, fazem perguntas para se conhecerem melhor e concordam e discordam com a mesma naturalidade. A relação construída no primeiro ato, é deliciosa de ser vista. Acreditamos que estamos diante de um casal que se gosta de verdade. Mas sabemos desde o começo do filme (mesmo que desconsideremos a sinopse) que aquela relação teria complicações devido as diferenças culturais impostas pela religião de Kumail, começamos a torcer para isso não de confirme. Agora eu pergunto: quantos filmes já não vimos com esse tipo de conflito? Casal se conhece, formam uma dupla em perfeita sintonia, mas um segredo é descoberto e a relação fica abalada. É clichê? Sim, mas isso é irrelevante quando ele é bem utilizado.

Quantos filmes já não vimos com esse tipo de conflito? Casal se conhece, formam uma dupla em perfeita sintonia, mas um segredo é descoberto e a relação fica abalada.

 

A partir do segundo ato, o tema do filme muda completamente para tratar das dificuldades que pessoas de formação cultural/religiosa tem ao se aproximarem. O filme fica mais pesado com momento bem melancólicos, mas sem nunca abandonar as sagazes piadas apresentadas em perfeitas doses, que ao mesmo tempo arrancam gargalhadas e provocam uma profunda reflexão sobre família, amor, respeito e escolhas individuais. Em entrevista, Kumail disse que “não [queria] estressar esse assunto” por se tratar de um assunto muito doloroso para os membros de famílias onde as crenças dos pais vão de encontro com as dos filhos. Mas Judd Apatow insistiu: “Você não precisa estressar o assunto, só precisa dizer o que sente em relação a isso. Você não precisa provar nada sobre religião, você pode apenas dizer que é complicado”. E foi exatamente isso que Kumail e Emily trouxeram para o roteiro. Um retrato real das dificuldades de famílias com crenças diferentes.

 

Enquanto Emily, está internada e em coma, Kumail precisaria lidar com sua família que tentava impor suas crenças a ele, e também lidar com a família de Emily que achava um absurdo a forma como as crenças da família de Kumail eram impositivas. E aqui é possível identificar uma excelente quebra de ‘clichê’. Normalmente em situações como essas, é comum um discurso maniqueísta que coloque as crenças religiosas como algo prejudicial sob o termo ‘fundamentalismo religioso’, em especial quando falamos de religiões muçulmanas em filmes americanos. Mas o que “Doentes de Amor” faz aqui é mostrar que os pais (seja de qual cultura for) desejará que seu filho tenha as mesmas crenças que ele, pois, naturalmente, para eles essa crença é benéfica. Não há aqui discursos de “isso é errado” e “isso é certo”. E apesar de vermos filme pelo viés de quem não tem as crenças muçulmanas, em momento algum Kumail desrespeita (pelo menos não intencionalmente) sua família. Ele apenas quer ter sua individualidade respeitada.

 

O humor empregado por Kumail Nanjiani chama a atenção pelo tom perfeito e pelo timing certeiro. Nenhuma piada está fora do lugar ou fora de contexto. Nesse sentido, ele realmente lembra muito Aziz Ansari, mas não pela fisicalidade do comediante indiano, famoso pela série “Master of None” mas pelo cuidado com o tom e momento de fazer a piada.

 

Mas apesar de “Doentes de Amor” utilizar bem alguns ‘clichês’, em outros ele escorrega por utiliza-lo sem necessidade, ou de forma jogada no roteiro. Por exemplo, temos o clássico momento onde o médico conta à família sobre a gravidade da doença, então uma trilha sobe abafando as palavras proferidas para que não ouçamos o que é dito enquanto a câmera se afasta dos personagens. Quantos filmes já não vimos com essa cena? OK, pode-se argumentar que o roteiro respeitosamente quis isolar o evento para que aqueles personagens pudessem sentir suas dores. Mas se esse foi o objetivo, só pioraria, pois, o filme nos convida a acompanhar todos os pensamentos mais íntimos do casal, mas de uma hora para outra ele decide que não vamos mais acompanha-los. Esse é o clichê mal utilizado.

 

Embora haja alguns escorregões, “Doentes de Amor” é daquelas comédias românticas que dá gosto assistir. Além disso, traz uma mensagem bem oportuna de como podemos lidar com quem pensa diferente, especialmente quando os ânimos estão inflamados. O filme traz uma família muçulmana em conflito com uma família ocidental, mas poderia ser uma família de um viés ideológico diferente, por exemplo.

 

Eu poderia encerrar meu texto por aqui, mas prefiro utilizar-me da conclusão de texto mais ‘clichê’ que existe – um resumo cheio de predicados e repetindo tudo que foi dito acima.

 

“Doentes de Amor” é um filme que poderá provocar discussões riquíssimas quanto às nossas intolerâncias culturais e o papel da família padronizada em um mundo multicultural. Madura, divertida, inteligente e muito relevante, o filme consegue arrancar gargalhadas sinceras e nos levar a comoção sem que uma interfira negativamente na outra. Comédia romântica como há um bom tempo eu não via no cinema.

 

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