Eu Cinéfilo #56: Batman Begins (2005) - Cinem(ação)
Batman Begins
Cinema Mundial

Eu Cinéfilo #56: Batman Begins (2005)

“Se você se torna mais do que apenas um homem, se você se dedica a um ideal, então você torna algo totalmente diferente. Uma lenda.”

Criado por Bill Finger e Bob Kane, Batman é um personagem presente há mais de 80 anos na cultura popular e que já teve diversas versões e leituras nos quadrinhos, conforme ia sendo retratado por diferentes autores. Na televisão e no cinema, essa transformação também foi bastante alternativa ao longo dos anos, com acertos e erros igualmente colossais. As visões mais emblemáticas e representativas – com pinceladas autorais que não só trouxeram vigor e flexibilidade ao herói – sempre cultivaram as principais características por trás do alter ego criado por Bruce Wayne: um homem atormentado pelos traumas do passado (perda precoce dos pais), que utiliza sua inteligência, coragem e riqueza para combater o crime e impedir que outros inocentes sofram nas mãos dos inescrupulosos vilões que invariavelmente habitam a sempre enigmática e caótica Gotham City.

A primeira grande onda conhecida como “Batmania” veio com a popularização da série de TV nos anos 60, com Adam West no papel principal. Essa primeira versão emblemática do personagem trazia bastantes elementos cartunescos e até hoje é lembrada por alguns esquetes cômicos, como a “Batdance”, o uso do bat repelente de tubarão, a icônica cena da bomba-relógio ou ainda a clássica “Feira da fruta”. O sucesso da série televisa culminou na primeira adaptação cinematográfica do personagem, no filme “Batman: O Homem-Morcego”, de 1966. Trazendo os principais vilões do universo das HQ’s, o filme cultivou uma visão colorida, galhofa e extremamente caricata do herói, a qual levou mais de duas décadas para que a essência do personagem fosse finalmente retratada nas telonas com maior fidelidade ao que ele representa.

Assim, em 1989 o excêntrico Tim Burton apresentou em “Batman” a figura de um personagem sombrio, temido e atormentado, visto pelos criminosos como uma criatura mítica, mitológica, estarrecedora. Com um tema sonoro igualmente icônico (criado por Danny Elfman), um visual condizente com a Gotham dos quadrinhos e um vilão bem retratado em tela (Jack Nicholson foi um casting perfeito para o Coringa), a principal polêmica do filme girou em torno da escolha de Burton em trazer Michael Keaton como protagonista, dada as divergências estereotípicas do ator com as do personagem. Contudo, o filme teve um grande sucesso comercial – levando um Oscar na categoria de Melhor Direção de Arte – e trouxe uma nova roupagem ao herói, inclusive em sua vestimenta: ao invés do collant adotado nos quadrinhos, uma espécie de armadura de borracha reforçada passou a ser a base de seu uniforme nas posteriores versões cinematográficas.

O sucesso do filme produziu uma sequência direta, “Batman: O Retorno”, em 1992, com praticamente a mesma equipe técnica e elenco de apoio, com exceção dos novos vilões apresentados. Melhorando em diversos aspectos técnicos, o filme agradou a crítica, porém causou maior distanciamento do público, em grande parte graças a maior liberdade autoral concedida a Tim Burton, que deixou o filme ainda mais gótico, sinistro e bizarro. Dentro desse contexto, a Warner Bros. investiu em uma nova abordagem ao trazer o diretor Joel Schumacher para produzir, sequencialmente, “Batman Eternamente” (1995) e “Batman & Robin” (1997), dois equívocos abissais do estúdio. Com novos atores interpretando o personagem (Val Kilmer e George Clooney, respectivamente), um visual colorido, vilões surtados e uma série de elementos narrativos beirando o ridículo, as continuações tentaram seguir a narrativa criada por Burton, mas com tons e temáticas completamente distintas, o que levou o personagem à geladeira por quase uma década, até finalmente ser resgatado por um diretor que entendia e idolatrava o herói.

Assim, em 2005, Christopher Nolan trouxe um necessário e revigorante frescor para a franquia, com o intitulado “Batman Begins”, adaptando HQ’s que traziam a origem do personagem (Batman: Ano Um, por exemplo) e apresentando David S. Goyer como corroteirista do projeto, o qual tinha uma grande influência dos quadrinhos em sua trajetória profissional. Nolan vinha em ascensão na carreira, após o grande sucesso de “Amnésia” (Memento, 2000) e a repercussão positiva de “Insônia” (2002), primeira parceria do diretor com a Warner, a qual se comprovaria um grande acerto para o estúdio, tanto do ponto de vista artístico quanto comercial.

Com um espetacular elenco de apoio e Christian Bale no papel principal – e aproveitando a onda crescente dos filmes do gênero (como, por exemplo, os da franquia X-Men e Homem-Aranha, ambos com sequências de sucesso na época) –, “Batman Begins” representa o melhor filme de origem para um super-herói por diversos motivos. O principal deles, a meu ver, consiste na visão e no caráter realista que Nolan empregou ao personagem, que combinam perfeitamente com o fato de Bruce Wayne ser um homem comum, sem superpoderes. Aliada a uma estética verossímil, uma direção competente e uma trilha sonora epopeica, composta pelo alemão Hans Zimmer, o reboot do personagem não poderia ser mais assertivo, divertido e subversivo.

Na trama, Wayne está perdido em sua busca para entender a mente dos criminosos. Após se exilar de Gotham, o herdeiro de um império de riqueza e poder se encontra em uma prisão caquética no oriente médio, quando é regatado por estranho e misterioso homem, Henri Ducard (Liam Neeson). Nessa primeira interação, Henri leva Bruce a uma autorreflexão sobre a motivação inicial de sua jornada, bem como ao fato de estar completamente perdido em seus propósitos. Assim, Wayne aceita o desafio imposto por Ducard e acaba se unindo a Liga das Sombras, uma antiga sociedade secreta que age combatendo injustiças e desequilíbrios na sociedade, com métodos extremamente controversos.

E é justamente nesta primeira hora de projeção que reside o grande acerto do filme. O treinamento ao qual Bruce é submetido faz jus a mitologia em torno do personagem, dando grande subsídio e veracidade a algumas das principais capacidades do que virá a ser Batman, o símbolo que o homem quebrado tanto buscava para dar continuidade às obras de seu falecido pai. Na Liga das Sombras, Wayne aprimora seu vigor físico, desenvolve sua capacidade como combatente, aprende a agir como stealth (“invisibilidade”), bem como se apresenta como o contraponto ideal para a própria Liga, demonstrando coragem, sagacidade, benevolência e uma capacidade altruística singular. Ao ser confrontado pelo mentor, Bruce escolhe romper com a sociedade secreta e desmistificar o fato de que Gotham estava completamente entregue aos criminosos e corruptos, indicando que um homem pode fazer a diferença e trazer esperança para as pessoas de bem.

Além disso, o filme usa flashbacks para mostrar a relação de Bruce com outras pessoas igualmente idealistas de Gotham, como o mordomo Alfred, a amiga de infância Rachel e o tenente policial James Gordon. E é por meio desse recurso narrativo que Nolan compõe o cenário mais interessante do enredo, quando apresenta Carmine Falcone como um gângster capaz de corromper várias esferas do sistema político de Gotham, na cena em que Bruce é humilhado pelo mafioso e decide deixar a cidade para compreender melhor a mente dos criminosos. A cena fundamental para dar o peso dramático é conduzida do lado de fora do bar em que Bruce é expulso, quando ele troca artefatos com um morador de rua e diz para que ele tenha cuidado com estes itens, pois, no futuro, irão procurá-los. “Quem?”, diz o mendigo, e Bruce responde enfaticamente: “Todos!”.

Além de desenvolver os personagens com fidelidade aos quadrinhos e estabelecer um universo realista, Nolan utiliza a jornada do herói para compor a narrativa do personagem. Outra cena icônica dos quadrinhos retratada no filme é aquela em que Bruce atira a arma de fogo (que usaria para abater o assassino dos pais) no rio, após ser confrontado e condenado em seus anseios por Rachel. Um dos maiores questionamentos acerca das adaptações anteriores recai sobre o fato de o personagem não utilizar desse aparato bélico contra seus oponentes, posto que foi exatamente isto o que ocasionou sua tragédia pessoal.

Na segunda metade do filme, Nolan amplia o universo criado e incorpora gradativamente elementos quadrinescos para criar o conflito, o que considero o ponto fraco do filme, mas que imagino como algo imposto pelo estúdio e pela forma como as adaptações do gênero eram conduzidas nesse período. Todo o plano megalomaníaco de contaminar Gotham e conduzi-la à extinção através do medo, paradoxalmente, vão de encontro à premissa realista do filme. Ao mesmo tempo em que Batman possui um tanque como veículo de transporte, ele aciona um dispositivo que atrai os morcegos da batcaverna para um edifício central de Gotham. Além da fatídica cena do Tumblr (batmóvel) pulando de casa em casa, nos telhados da cidade! A sequência final, do trem, é a que menos incomoda, nesse aspecto.

No entanto, o filme é repleto de acertos, sobretudo ao trabalhar a relação entre os personagens e a criação da mitologia acerca do morcego como símbolo. O elenco estelar, composto pelos já mencionados Christian Bale e Liam Neeson, conta ainda com nomes como Michael Caine, Gary Oldman, Morgan Freeman, Tom Wilkinson, Rutger Hauer, Ken Watanabe, além dos menos badalados Cillian Murphy e Katie Holmes (esta última muito criticada, sem reais motivos condizentes). Todos os coadjuvantes são bem trabalhados junto ao protagonista, para estabelecer relações de confiança/protecionismo (Alfred), amizade/interesse amoroso (Rachel), acessibilidade/conhecimento tecnológico (Lucius), oposição/disputa intelectual (Mr. Earl), bem como para estabelecer a figura do aprendiz que confronta – física e ideologicamente – o mestre (Ra’s Al Ghul).

Além disso, apesar de ser um diretor relativamente iniciante em Hollywood, Nolan soube dosar com maestria os momentos de drama e humor (sim, o filme tem piadas que funcionam!) com as sequências de ação. A primeira aparição do Batman é muito bem retratada, apesar de algumas pessoas não entenderem a necessidade de “esconder” o herói durante a cena de luta corporal, através da edição com frames rápidos. Dessa forma, Nolan conseguiu manter o suspense sobre o personagem e guardou a primeira tomada – com o traje completo aparecendo – para o desfecho triunfal, no qual o herói supera o primeiro adversário estabelecido na trama (Falcone), com a frase que já se tornou um chavão do personagem: “I’m Batman!” (Eu sou o Batman).

Outra cena que define o personagem é quando Batman interroga o parceiro de Gordon, demonstrando a sua grande imponência sobre os criminosos/corruptos de Gotham, bem como fundamentando outro elemento narrativo (por vezes exaltado e, em outras, ridicularizado) que é a mudança de voz incorporada por Bale na transição de Bruce para seu alter ego. A direção da cena é incrível, pois coloca o espectador sob o ponto de vista do policial interrogado e como seria assustador se estivéssemos na pele dele! Da chuva constante à escolha de ângulos, closes e montagem, Nolan estabelece a linguagem perfeita para retratar o tom soturno, o caráter investigativo, a força sobressalente e os recursos militares-tecnológicos, absolutamente fiéis às representações mais tangíveis do personagem.

Ainda sobre Christian Bale, vale ressaltar a exuberante performance do ator como Bruce Wayne, entregando um aspecto fanfarrão e descompromissado, justamente para proteger sua identidade secreta e a segurança daqueles que o cercam. O ator foi um casting certeiro para o papel, seguindo muito do que havia sido apresentado em “Psicopata Americano”. A entrega física do ator, as nuances entre homem e símbolo, além da grande química com o todo o elenco foram fundamentais para que ele se tornasse, já nesse primeiro filme, o melhor ator a interpretar o personagem nos cinemas.

Por fim, outra menção importante é que “Batman Begins” está repleto de frases de efeito e quotes que narrativamente se repetem para causar diferentes sentidos, conforme o período de tempo em que a história transita. Alguns exemplos: “não é o que você é por dentro, mas sim o que faz que te define” é usado inicialmente por Rachel, que dá uma lição de moral em Bruce na saída de um hotel; já no clímax, Batman utiliza as mesmas palavras para revelar sua identidade à amiga de infância. Mr. Earl diz ironicamente “Não recebeu o memorando?” quando demite Lucius Fox; as mesmas palavras são proferidas por Bruce no final do filme, momento em que Lucius é reincorporado à diretoria da Wayne Interprises. Outra situação mencionável é implantada no primeiro ato, quando Henri Ducard quebra o chão de gelo e derruba Bruce no lago e que é reforçado na invasão à mansão Wayne, já na transição para a parte final do filme, em que diz “Nunca ficou atento ao que cerca você”; essa mesma citação é dita por Batman quando os dois lutam no trem e o homem-morcego supera o oponente, salvando Gotham do ato terrorista instaurado. Enquanto para muitos, esse recurso do roteiro torna o filme mais enfadonho, clichê e até cafona, particularmente acho que valorizam ainda mais as cenas, tornando-as memoráveis. Uma espécie do que foi feito em “Homem-Aranha” (2002) com a célebre frase “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”.

Em última análise, “Batman Begins” tem um saldo extremamente positivo, trazendo novos ares ao personagem e ao gênero em si, ainda buscando novas formas de adaptar os personagens dos quadrinhos, sem alguns excessos automaticamente associados à mídia e utilizando, na medida certa, os cada vez mais sofisticados efeitos de computação gráfica (CGI). Acima de tudo, é um filme extremamente divertido, original, espirituoso e esplêndido. Tecnicamente acima dos padrões do gênero, a obra aborda temas como luto, pesar, autoafirmação, corrupção e justiça, de uma maneira muito inusitada e autêntica, cujos elementos cinematográficos corroboram para uma experiência audiovisual agradável em todos os sentidos, sobretudo às pessoas que não analisam cinema pelo rótulo associado a determinados gêneros. Mas, como diz o ditado, “a beleza está nos olhos de quem vê”.

E Batman Begins é lindo.

Texto escrito por: Rômulo Siviero

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