5 discursos do cinema nacional para pensar na vida – e na arte
Cinema e algo mais

5 discursos do cinema nacional para pensar na vida – e na arte

Foi durante um monólogo de um filme que me dei conta de como o cinema brasileiro possui momentos potentes. Falas fortes, discursos que nos levam à mais profunda reflexão. E comecei a me lembrar de alguns momentos semelhantes àquele que eu via. A maioria é formada por monólogos, seja em forma de um desabafo de um personagem para outro, seja em forma de “voice over”, mas há diálogos ou momentos entrecortados.

Pensando neles, e com acesso a todos os textos ditos pelos autores, optei por reuni-los neste artigo e explicar um pouco da profundidade de cada um deles. As explicações podem trazer “spoilers”.

1- Desabafo do Coelho em “Inferninho”

No filme Inferninho, de Pedro Diogenes e Guto Parente, acompanhamos a trama de Deusimar (Yuri Yamamoto), dona do bar que intitula o filme. Ela é cercada por personagens interessantes e pitorescos, e que sonha em se apaixonar e sair pelo mundo após encontrar seu grande amor.

Inferninho é desses filmes de baixíssimo orçamento que transborda dedicação e carinho de seus realizadores. Em alguns momentos, me lembrou “Paraíso Perdido”. Muito do filme é sobre dar o próximo passo na vida, se desprender das coisas e conhecer o mundo. É justamente no auge do filme que Coelho (Rafael Martins) desabafa com a protagonista. Deusimar não conseguiria fazer essa viagem com alguém, então resta a ela fazer isso sozinha. O discurso é visceral e inspirador.

A gente não vai deixar tu morrer, Deusimar. A gente não vai deixar tu morrer, tá ouvindo? Tu tem que fazer alguma coisa. Tu tem que tomar alguma atitude. Passou a vida inteira esperando, esperando. Tu tava esperando que alguém te levasse embora daqui. Mas foi tu, tu que nunca teve coragem de sair daqui. Tu nunca deu um passo pra fora daqui. Era só tu abrir o portão e… Mas tu não, tu fica aqui, se maldizendo da vida, se maldizendo e botando a culpa em tudo e em todo mundo… a vida é tua, Deusimar. Então trata bem da vida. Faz assim ó, faz carinho na vida, não maltrata a vida não. O bar tu vende, agora a vida é tua. A vida é tua. Até o fim. A vida é tua até o fim.

Tu vai pegar esse dinheiro aqui, aí tu vai atrás. Tu vai atrás do teu sonho, vai atrás do teu amor. Aí quando tu tiver bem feliz, aí tu lembra de mim, por favor. Como se eu tivesse direito, como seu eu fosse gente, lembra de mim. Por favor. Vai por ti e por mim. A vida tá correndo, Deusimar. Vai embora daqui, por favor.

2- Reflexão profunda de Cristiano em “Arábia”

“Arábia” e por que precisamos de cinema - cena do filme Arábia, de João Dumans e Affonso Uchoa

“Arábia” é um excelente filme. Dirigido por João Dumans e Affonso Uchoa, conta a história de Cristiano, rapaz de origem humilde que vive uma vida repleta de trabalhos em diferentes cidades. Tudo isso acontece com o protagonista narrando cada passo, graças a um texto que deixou e foi encontrado por um garoto da vizinhança.

Essencialmente, o filme é sobre a vida do trabalhador brasileiro e suas (des)esperanças. Fala sobre a relação entre empregado e patrão, a falta de perspectivas, a solidão. E nos minutos finais do filme, vem um verdadeiro baque: um momento de desabafo em que só se ouve a voz do protagonista em meio ao absoluto silêncio. E o texto é forte porque é como um desabafo sobre a vida que ele levou até o momento.

Não tem como sair ileso desse filme e não pensar no trabalho e nos sonhos de cada um de nós, especialmente da massa de brasileiros trabalhadores que carrega o país nas costas.

E pela primeira vez, parei para ver a fábrica. E senti uma tristeza de estar ali. E percebi que na verdade eu não conhecia ninguém. Que tudo aquilo não significava nada pra mim. Foi como acordar de um pesadelo. Me sinto como um cavalo velho, cansado. Meus olhos doem, minha cabeça dói. Não tenho força pra trabalhar. Respiro rapidamente, meu coração é uma bomba de sangue. Queria puxar meus colegas pelo braço, e dizer pra eles que eu acordei. Que enganaram a gente a vida toda. Estou cansado. Quero ir pra casa. Queria que todo mundo fosse pra casa. Queria que a gente abandonasse tudo, e deixasse essas máquinas queimando, o óleo derramando, os pedaços de ferro abandonados, a esteira desligada, a lava quente derramando e inundando tudo. (…) E a gente ia estar em casa, tomando água, dormindo à tarde. A gente ia tossir a fumaça preta, ia cuspir fora os pedaços de ferro do nosso pulmão. Nosso sangue ia deixar de ser um rio de minério, de bauxita, de alumínio, e ia voltar a ser vermelho. Igual quando a gente é novo. E é por isso que eu queria chamar todo mundo. Chamar os forneiros, os eletricistas, o soldador e os encarregados. Os homens e as mulheres. E dizer no ouvido de cada um: vamos pra casa, nós somos só um bando de cavalos velhos. Mas eu sei que ninguém ia me ouvir, porque ninguém gosta de ouvir essas coisas. Mas eu queria falar no ouvido de cada um deles: a nossa vida é um engano, e a gente vai sempre ser isso, e tudo o que a gente tem é esse braço forte e a nossa vontade de acordar cedo.

3- A carta do Rafa em “Entre Nós”

Dirigido por Pedro Morelli e Paulo Morelli, “Entre Nós” é um dos filmes brasileiros que mais gosto. Sei que há algo de “white people problems” nele, especialmente após citar a dura realidade de classes trabalhadoras nos filmes comentados anteriormente, mas o fato é que eu me identifico com ele.

No filme, um grupo de recém-formados na faculdade se reúne em uma chácara para celebrar e decide fazer uma “cápsula do tempo” com cartas a serem abertas 10 anos depois. Eles o fazem, mas nesse período suas relações mudaram e um dos colegas morreu. A carta dele, lida por outra pessoa, é curiosa porque nos faz refletir sobre as transformações que o tempo nos causa. “Teremos mudado o mundo, ou o mundo, a gente?” é uma pergunta para qual a resposta é quase sempre frustrante. Cabe a nós lidar com duas coisas: as frustrações e os erros do passado. “Entre Nós” é um filme especialmente sobre a segunda.

Meus queridos companheiros de fumo e de cana. Em 10 anos talvez não sejamos mais tão próximos. Mas espero que esse momento esteja tão repleto de carinho e sacanagem quanto nossos dias neste presente que nos parecerá talvez tão distante. Só torço para quando me olhar no espelho ainda me reconhecer. Quem vamos encontrar? Teremos mudado o mundo, ou o mundo, a gente? E se mais uma vez, uma pedra fizer de três amigos um só, então serei de novo um menino. Um menino cuja infância se mistura com o desejo, salvando um pássaro como a si mesmo. Puro, ingênuo, quase homem. Que puta saudade do que somos.

4- O desejo de Selma em “No Coração do Mundo”

No Coração do Mundo - cena do filme - Grace Passô em um cenário de foto para alunos de escola

Mais curto, porém não menos potente, o texto falado por Selma (Grace Passô) em “No Coração do Mundo” é também um dos temas do filme. Todos os personagens tentam dar o próximo passo a despeito das dificuldades. Tudo o que Selma quer é fugir, encontrar um significado para a vida. Acima de tudo: um dinheiro para ter segurança. A cena em que ela diz isso é com mais de uma tela de distância, como se o filme quisesse nos mostrar o quanto ela está distante de chegar no chamado coração do mundo.

Além de mergulhar na vida de diversos personagens, “No Coração do Mundo” é centralizado na história de Marcos (Léo Pyrata), que aceita participar de um esquema para conseguir um dinheiro e dar uma guinada na vida.

Coração do mundo é o próximo lugar. Cara, é pra onde a gente quer ir. Melhor, muito melhor. É onde a gente quer pisar. Pra onde vai o desejo da gente. Aqui não é mais o meu coração do mundo, não. Já foi, não é mais, acabou. Saturou. É isso. Já foi. Agora eu quero o próximo lugar. Só isso.

5- A mensagem na garrafa de Clara em “Aquarius”

Saindo um pouco do pensar sobre a vida para refletir sobre a arte, o depoimento de Clara (Sônia Braga) é parte de um diálogo, mas o que ela diz é algo a ser pensado por muito tempo. No filme de Kléber Mendonça Filho, a personagem de Sônia Braga vive a pressão de sair do apartamento em que vive para que uma construtora faça um novo prédio no local. Ela é resistência à especulação imobiliária e à destruição da memória. E a cena à qual me refiro tem tudo a ver com memória.

Ainda no início da trama, Clara é questionada por uma jornalista sobre o streaming e as novas tecnologias. ela exemplifica mostrando um disco que encontrou em um sebo. A conclusão à qual Clara chega para tentar explicar a diferença entre mídia física e mídia on-line é uma sugestão do caminho que nosso pensamento deve tomar. Não deixa de ser uma reflexão sobre a vida: sobre as marcas que deixamos nos objetos, nosso legado cultural e a permanência das coisas.

Eu gosto de tudo, tá certo. De MP3, streaming, tendo música pra mim tá bom, tá importante, e essa nova tecnologia em geral, mas…

Posso te contar uma história? (…)

Esse disco eu comprei em Porto Alegre, num sebo (…). Aí tô aqui num dia calminho, domingo, abri o disco pra ver, e olha o que encontrei dentro. Esse artigo do Los Angeles Times. Esse artigo é de novembro de 1980. Esse disco, o Double Fantasy, foi lançado em dezembro de 1980. Ou seja, o artigo foi publicado semanas antes do John Lennon ser assassinado: no dia 8 de dezembro de 1980 (…). Esse artigo aqui que foi publicado dias antes do John Lennon ser assassinado e de você ter nascido diz o seguinte: “os planos de John Lennon para o futuro”. Este disco que estou segurando passa a ser um objeto especial. (…). Isso aqui é feito uma mensagem na garrafa.

6- Final do documentário “Elena”

Todo o documentário “Elena”, de Petra Costa, é de certa forma um grande monólogo. Muito mais que um registro, ele é uma jornada do luto de uma cineasta que perdeu a irmã. Porque toda perda exige um processo de luto. Neste filme, a busca por quem sua irmã foi é também uma forma de processar tudo e expurgar os sentimentos que ficaram guardados.

Acontece que, no final, é como se Petra Costa resumisse toda sua elaboração da morte da irmã. Porque ela precisava entender sua irmã para se separar dela e seguir sua vida. Agora sem ela. Afinal, quando perdemos alguém, precisamos entender que essa pessoa não faz mais parte da nossa vida, ainda que a saudade sempre permaneça. E como ela mesma diz, este é um imenso prazer que vem acompanhado da dor.

Se ela me convence que a vida não vale a pena, eu tenho que morrer junto com ela. Eu tenho medo. Eu tenho medo do que o tempo vai fazer comigo. (…) Eu tenho medo. Qual o meu papel? (…) Qual o meu papel nesse filme? Faço 17, 18 anos. E sinto que com as horas que passam, eu vou chegando mais perto de você. Até que no meu aniversário de 21 anos, minha mãe me olha e me diz: “agora você tá mais velha que a Elena”. O medo de que eu fosse seguir os seus passos começou a se desfazer, mas eu continuei achando que você, Elena, estava dentro de mim, que era um estar em mim. Deixei de sentir isso ao começar te buscar. Você foi tomando forma, tomando corpo, renascendo um pouco pra mim. Mas pra morrer de novo. E eu, com muito mais consciência pra sentir sua morte dessa vez. Imenso prazer que vem acompanhado da dor. Me afogo em você, em Ofélias.

7- Um brinde em Café com Canela

Personagem de Aline Brunne andando de bicicleta - Cena do filme Café com Canela

Eis o mais curto de todos. Em “Café com Canela”, o discurso é apenas um brinde. Algo simples. Mas é justamente essa simplicidade que combina com o espírito do filme. Ele enxerga a vida como algo simples, como as ondas do mar ou a brisa a balançar as folhas das árvores.

O longa dirigido por Glenda Nicácio e Ary Rosa conta a história de diversos personagens e suas perdas, dramas e dificuldades. O melhor do filme está na forma delicada como ele retrata os dramas e o vai e vem da rotina. É desses filmes que dão vontade de viver.

Levanta aí que eu quero fazer um brinde. Um brinde à vida. Que mesmo toda desencontrada, cheia de loucura, oferece pra gente os mais lindos encontros e inacreditáveis reencontros. Saúde.

Menção honrosa:

A carta do final de “Central do Brasil”

Minha ideia era falar sobre filmes mais recentes. Todos são da última década. Mas seria impossível não lembrar o final emocionante de “Central do Brasil”. A obra-prima da Walter Salles conta a história da escrevedora de cartas Dora (Fernanda Montenegro) e do menino Josué (Vinícius de Oliveira), e termina de forma esperançosa. Na carta que escreve a ele, no final da projeção, Dora pode estar mentindo ao dizer que o pai dele vai voltar, mas é essa esperança que deve movê-lo. Da mesma forma, ela admite que tem saudade de seu próprio pai e de tudo. Porque viver é isso: é ter esperança e saudade o tempo todo.

Josué,

Faz muito tempo que eu não mando uma carta para alguém. Agora eu tô mandando esta carta pra você. Você tem razão: seu pai ainda vai aparecer, e com certeza ele é tudo aquilo que você diz que ele é. Eu lembro do meu pai me levando na locomotiva que ele dirigia. Ele deixou eu, uma menininha, dar o apito do trem a viagem inteira. Quando você estiver cruzando as estradas no seu caminhão enorme, espero que você lembre que fui eu a primeira pessoa a te fazer botar a mão no volante. Também vai ser melhor você ficar aí com seus irmãos. Você merece muito, muito mais do que eu tenho pra te dar. No dia que você quiser lembrar de mim, dá uma olhada no retratinho que a gente tirou junto. Eu digo isso porque tenho medo que um dia você também me esqueça.

Tenho saudade do meu pai. Tenho saudade de tudo.

Dora.

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