Eu Cinéfilo #49: O Corpo é Nosso - um tapa na cara do machismo
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Eu Cinéfilo #49: O Corpo é Nosso – um tapa na cara do machismo

Misto de ficção com documentário, O corpo é nosso é um convite à reflexão de uma visão (ainda) sexista do homem para com a mulher em pleno século XXI, traçando um paralelo em relação ao corpo da mulher, dentre inúmeros outros temas relevantes abordados ao longo da obra, tendo como foco principal a trajetória da liberação do corpo feminino brasileiro (com ênfase em alguns momentos na mulher negra).

A parte ficcional do “doc/ficção” retrata um jovem jornalista chamado Marcos, designado para cobrir uma pauta de caráter feminista, a partir do momento que ele mergulha em um universo desconhecido para ele, os pré conceitos do personagem vem à tona (racismo e machismo) ao mesmo tempo em que ele (e muito provavelmente o espectador) iniciam um processo de auto reflexão a respeito da figura da mulher (seja ela negra ou branca) na sociedade, seus desafios e conquistas ao longo de décadas.

A liberdade do corpo feminino é um dos temas centrais do longa, através da música, dança, manifestações sociais com base no século XX, período de grandes transformações, ao mesmo tempo que revela de forma intencional ou involuntária uma visão machista da sociedade de modo geral em relação a mulher.

Mais do que apenas um documentário/filme, tendo a figura feminina como tema principal, a obra toca em feridas abertas como desigualdade social e preconceito racial, intercalando com depoimentos reais de antropólogos, historiadores, psicólogos e ativistas do movimento feminista/negro. É nesse emaranhado de ideias que surgem os mais variados assuntos sempre mantendo um enfoque especial no papel da mulher (negra ou branca) ao longo do tempo.

A erotização propagada pelo funk através de coreografias que ressaltam a sensualidade e liberdade das jovens com o seus corpos, não poderia ficar de fora. Dentre diversos depoimentos interessantes, uma antropóloga revela como o funk incomoda os setores mais conservadores da sociedade que vê na menina que requebra o “popozão” (nádegas) como uma grávida iminente.

E por falar em funk, cantoras como Mc Carol, Tati Quebra Barraco e algumas outras revelam, por meio de suas canções, questões como sexualidade, seus desejos e suas batalhas, em resposta a homens de mentalidade machista que ainda enxergam a mulher como objeto de desejo.

Elas sobem no palco, quebram padrões de beleza daqueles que estamos acostumados a ver na TV, dando voz a mulher negra de classe média baixa, através de melodias que abordam seus desejos e anseios, inclusive em relação a sexo, mesmo que essas músicas sejam carentes de um bom arranjo musical e concordância gramatical como bem pontuou o respeitado historiador de música popular brasileira Rodrigo Faour.

Para todas elas, o funk é algo libertador, ele sai do gueto e se torna uma das manifestações culturais mais legítimas das mulheres que vivem nas periferias do Rio de Janeiro. Outros estilos musicais também são abordados no filme/doc como o maxixe e o samba sempre traçando um comparativo com a posição da figura feminina em relação a eles.

Entretanto, em termos de direitos, a mulher teve importantes conquistas no último século mas sua luta ainda é longa, principalmente diante de sua liberdade corporal, em meio a fatalidades que nos deparamos diariamente nas mídias envolvendo assédio, estupro, feminicídio, violência e racismo. Ao reunir entrevistas, cenas de ficção e imagens de arquivo, enriquecendo ainda mais o conteúdo do doc/ficção, revela as razões que colaboraram para esta liberdade, propondo uma discussão a respeito do feminismo por meio da desconstrução do masculino, conforme a diretora quis mostrar.

Não é a toa que o lado ficcional do longa fica responsável por mostrar os personagens representando situações recheadas de preconceitos envolvendo sexismo e machismo, isso fica evidente quando o protagonista descobre um segredo do passado que ele sequer tinha ciência do fato, aliás cabe ressaltar a boa condução da diretora Theresa Jessouroun nas cenas de maior apelo dramático.

A evolução do papel da mulher na sociedade no século 19/20 é retratado através das décadas, mencionando a música, a dança, a moda, as artes de modo geral, em um período de grande repreensão política e comportamental, sem deixar de mencionar o papel da igreja que na época incumbia a mulher para ser apenas mãe e reprodutora, algo que começou a mudar no finalzinho do século XIX com o teatro de revista e o surgimento das primeiras revistinhas eróticas.

O Corpo é Nosso é uma aula sobre feminismo sem cair no didatismo, sendo educativo sem ser chato como aqueles velhos documentários que eram exibidos nas escolas nos anos 90, que ao invés de educar, só faziam dormir em sala de aula. E por falar em educação, cabe destacar a relevância de obras como esta, que deveria ser exibida nas instituições de ensino com o propósito de ampliar o conhecimento de gerações mais jovens acerca do papel da mulher em comunidade e toda a sua luta e conquistas ao longo de décadas, uma batalha que ainda não terminou, mas que deu passos avançados.

Não é um filme feito para mulheres, mas uma obra de caráter universal, que revela o feminino como indivíduo, dona do seu próprio corpo e de suas escolhas, onde conforme já mencionamos, propõe que o espectador faça a mesma reflexão que o personagem Marcos acaba fazendo ao longo da trama.

A frase “meu corpo, minhas regras” pode soar clichê mas define da melhor forma a concepção de O Corpo é Nosso, pena que existem homens que não compreenderam isso ainda, salvo o protagonista que em uma tentativa de desconstrução de seus valores pré concebidos no passado, consegue superar isso, protagonizando uma das cenas mais belas do filme.
O Corpo é Nosso estreia nos cinemas do país no dia 05 de setembro, e conta no elenco com bons atores como Oscar Magrini, Renato Góes, Heitor Martinez e outros.

Texto escrito por: André Araújo

Veja o texto do Cauê sobre o filme na Cobertura do CinePE

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