"Ponto Cego", álbum conceitual do Dead Fish fala sobre a situação do país
ArteCines

O Ponto é Cego mas o tiro é certo

No dia 31 de maio de 2019 o Brasil acordou com um olho roxo depois da porrada recebida com o lançamento de “Ponto Cego”, novo álbum da banda capixaba Dead Fish. O álbum teve seu single “Sangue nas Mãos” lançado junto com um vídeo clipe no dia 23 de maio, prenunciando o que viria a ser este novo trabalho.


A banda ficou 4 anos sem lançar um álbum o que por si só já gerava expectativas em seus fã, mas logo que “Sangue Nas Mãos” é lançada, não só os habituais fãs da banda como pessoas que não conheciam o trabalho de 28 anos de estrada ficaram empolgadas com o teor e a qualidade do som dos caras. Não a toa na data de hoje o clipe de “Sangue nas Mãos” detêm mais de 102 mil visualização em 2 semanas de lançamento, o que é um número bem expressivo para uma banda sem aporte midiático.


Durante estes 4 anos de hiato entre o último álbum, “Vitória” de 2015 e o mais recente, muita coisa mudou no cenário político, econômico, cultural e social no Brasil e isso se reflete nas 14 músicas do álbum.“Ponto Cego” é uma amálgama destas mudanças que nasceram em julho de 2013 e tomaram diversas formas culminando em outubro de 2018 com o resultados das eleições no país todo.


O disco narra os eventos que perpassaram estas mudanças em uma estrutura de álbum conceitual, ou seja, uma obra onde todas as músicas convergem para um único tema central, no caso, o cenário político do Brasil. Este conceito já esteve bastante em voga no mundo da música em especial nos anos 70 com o fortalecimento do rock progressivo com bandas como Yes, Rush, King Crimson, Emerson, Lake and Palmer dentre outras. Entretanto, sonoramente Dead Fish não tem absolutamente nada a ver com essas bandas, o que torna “Ponto Cego” uma experiência atualizada de um conceito clássico do rock.

O álbum já abre com o pé na porta com a música “A Inevitável Mudança” que traz consigo um riff pegado e um baixo presente desde o início. Esse peso é sentido desde as primeira batidas e cresce com a primeira estrofe que critica fortemente essa nova onda de revisionismo histórico.

A narrativa vinda do colonizador
Tingiu de branco nossa história
E sem escrúpulo omitiu e apagou
O outro lado da moeda


A letra fala de como a história do Brasil sempre foi contada pelo viés do opressor / colonizador e no momento em que as vozes outrora silenciadas começaram a ganhar volume, um movimento revisionista passa a ganhar forma. Em outro trecho da música temos a seguinte frase:

Do ponto cego da história brotam vozes de resistência e de luta
Quando o oprimido finalmente se expressa o resto, cala e escuta
Tirando aqueles que nunca querem ouvir
Fecham os olhos e sonham com aquilo que nunca mais será


A música seguinte é “Sangue nas Mãos”, uma porrada brutal, direta e sem rodeio. Em entrevista dada ao site da UOL, Rodrigo Lima, vocalista da banda fala sobre esta linguagem direta em suas letras: “É um disco que tem uma urgência. Ele mostra o óbvio, mas da forma mais urgente possível. Ao nosso ver, as pessoas não estão dispostas a ouvir a realidade, elas querem viver a verdade delas”.


“Sangue nas Mãos” com sua bateria furiosa (por vezes parece até estar em um ritmo diferente) escancara o golpe parlamentar ocorrido em 2016 com o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff. O refrão marcante tem as seguintes palavras:

Motivo de vergonha, indignação!
Os gritos que ecoam das janelas
O lado certo da história não tem sangue nas mãos


Em “Janelas”, Dead Fish aponta para eventos entre junho de 2013 e março de 2016 onde pessoas foram para as janelas “gritarem” por mudanças, porém, fazendo-o em nome de interesses retrógrados, ou como a própria letra diz, “em nome da família / e de um torturador”. “Sangue nas Mãos” aponta para uma classe que optou pelo retrocesso expondo o sangue nas mãos de pessoas mortas pelo regime militar (1964 – 1985) e das que virão a existir diante de políticas de armamento em massa.


A música seguinte é “Pobre Cachorro” que apesar da potência e fúria inicial, tem um refrão bem melódico e limpo. A letra relaciona a relação da classe média com elite que comanda o país, comparando-a à cãezinhos domesticados. A referência é feita a partir de algumas fotos de uma classe média protestando com cachorrinhos na coleira como se fossem adereços de seu status.

Imagem relacionada
Classe média, seu uniforme de protesto e adereços


A faixa seguinte é “Não Termina Assim”, música mais sofisticada com breves solos de guitarras, riffs mais elaboradas e viradas de bateria que remetem a um rock mais rebuscado. A letra é uma das mais belas e otimistas do álbum. É um hino de resistência que facilmente cairá no gosto do público que ainda não conhece Dead Fish. A música se encerra com as seguintes palavras:

E não termina assim, é só o começo
Não temos medo de enfrentar o que há por vir
Sem nos calar
Os dias de autoritarismo terão fim


“Sombras na Caverna” tem a letra mais filosófica dentre as 14 faixas, retratando um universo paralelo vivido por pessoas que negam as pesquisas, os estudos acadêmicos e a ciência em nome de suas convicções infundadas. A música faz diversas referências ao “mito da caverna” de Platão onde pessoas vivem em uma espécie de realidade ilusória, tema abordado em filmes como “Matrix” de 1999, “O Show de Truman” de 1998 e a “A Vila” de 2004. Aliás, “A Vila” é um ótimo de exemplo de como a cooptação do conhecimento aprisiona as pessoas ao passado.


A sexta faixa é “O Melhor em Um”, música sobre meritocracia e a cultura da mediocridade. Em certo momento a música questiona “qual é a vantagem de ser o melhor em um?” e uma referência às escolhas esdrúxulas de Ministros como Damares Alvez, Ernesto Araújo e Abraham Waintraub que foram escolhidos como os melhores para o cargo.


Em “Doutrina do Choque” o peso e a velocidade voltam com força nesta música sobre a política neo-liberal presente no país desde o governo Temer que buscava privatizar o máximo de empresas possíveis. O trecho “destruir para lucrar com a reconstrução” representa bem a mensagem da música sobre sucateamento do estado.


Se você chegou até aqui mas ainda assim sentindo falta do punk da origem da banda, a faixa “Etiqueta Social” cumpre o papel ao trazer peso e alta velocidade em uma música que é pura energia para falar sobre a vigilância que muitos querem impor à sociedade impedido-a de adquirir senso crítico.

Crianças
Ficarão longe do senso crítico
Quem fraquejar
Será imediatamente punido


“Suv’s (Stupids Utility Vehicle)”, nona faixa do disco, é a música mais sofisticada do álbum. Riffs com peso e melodia, refrão limpo, cadenciado e sem muita velocidade criando um belo contraste com a bateria pungente que se destaca nos refrões. Letra sobre massas de manobra que replicaram as baboseiras de lunáticos de internet e hoje colhem os resultados.


“Apagão” e “Janelas” parecem até mesmas músicas, tanto pela volta da velocidade quanto pela letra sobre o medo causado pela desesperança, o que ocasionou no atual cenário de escuridão intelectual em que vivemos. Neste trecho o álbum entra em uma pequena repetição que dura pouco, retomando a força com a faixa seguinte – “Messias”.


A décima segunda faixa é alto explicativa pelo título. A música fala da figura messiânica que recebe votos de confiança de uma parcela que acredita em suas promessas mentirosas sustentadas por pós-verdades e fake news. É mais uma bela música riffada com quebras no meio, dando um momento de respiro diante de tanta porrada.

Bom dia, grupo!
Olha a notícia
Sentimental e alarmista
Que desperta indignação
E aponta um inimigo


Entrando na parte final do álbum, em “Receita pro Fracasso” o baixo reaparece com força em uma música sobre políticas públicas que atravancaram a vida do trabalhador por meio de reformas improdutivas. Fala também sobre a política de consumo desenfreado que escraviza as pessoas à aquisição de bens que não necessitam, retomando o tema de “Você”, música do álbum que lançou o Dead Fish para o grande público – “Zero e Um” de 2004.


A última faixa é “Descendo as Escadas” que começa com 24 segundos de introdução e depois não para mais. A música tem uma batida única o que a torna um pouco enjoativa, mas compensa pela bela letra que sintetiza tudo o que já foi dito no álbum.

Água empoçada, rigidez, torpor
Discurso de casta, modelo importado
Baixa tolerância, alta infração
Seguindo a hierarquia e vivendo em negação


“Ponto Cego” é o retrato da contemporaneidade brasileira. É um álbum que se junta ao “Ladrão” do Djonga, “Blues Man” do Baco e “Goela Abaixo” da Liniker que resolveram cantar o que era necessário ser tido. No ano em que o cinema brasileiro foi premiado no principal festival do mundo, a música surge como mais uma via de mobilização e resistência, e isso, Dead Fish sabe fazer muito bem.

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