Dumplin' e a construção do corpo gordo - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
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Artigo

Dumplin’ e a construção do corpo gordo

O filme Dumplin’ da Netflix tem gerado algum debate, mas não pretendo levantar aqui uma discussão sobre arcos da história, roteiro, atuação ou nada disso. Quero tentar externar aqui a importância. Sinceramente, não importa para esse filme se a história das amigas se perde ou se a Jennifer Aniston está fraca. Não importa nem mesmo se a cena final é clichê.

A beleza do filme está em sua personagem principal, Willowdean Dickson, a filha gorda de uma antiga ganhadora de concursos de beleza. E por que? Justamente por isso, ela é gorda. A construção de um corpo gordo dentro da sociedade é algo completamente diferente da construção de corpos magros… E muito, mas muito, mais destrutivos. Habitar um corpo gordo é ter em todos os lugares a mensagem de que “você não cabe”, um mal-estar velado diante qualquer situação cotidiana.

Dumplin’ é sobre isso. Sobre esse mal-estar. Sobre como é construída a imagem corporal de uma pessoa gorda, principalmente uma mulher gorda. A ideia dessa construção pode parecer uma coisa banal, mas é inquietante para quem a vive. O debate sobre corpo versus saúde, beleza, aceitação e todas as outras sempre esteve em evidência, representado pelos corpos nus ou vestidos nas capas de revista, manchetes, filmes e séries.

O corpo gordo e a sociedade

Estar em um corpo “fora do padrão” é sentir-se excluído, triste. A aceitação nunca é imediata e sempre tem seu preço doloroso, que pode durar uma vida inteira. Quando se cresce ouvindo as associações de beleza com a magreza, como você vai se sentir bonita em um corpo com muitas e muitas polegadas?

A ideia de beleza é escondida atrás de preocupação com a saúde, presumindo que pessoas gordas são, estão ou serão doentes única e simplesmente por estarem acima do peso considerado o ideal. A gordofobia toma sua força ali, por trás de argumentos disfarçados de preocupações medicinais. Ninguém pergunta para um magro se seu colesterol está bom…

A própria representação cinematográfica de beleza e peso já foi feita erroneamente tantes vezes. Para citar apenas uma: O Amor É Cego, o filme do Jack Black com a Gwyneth Paltrow, que não ensina que beleza vem em qualquer corpo, mas que ela “não é tudo” e que a “beleza interior conta” de forma bem rasa e lamentável.

Em Dumplin’ vemos isso. A personagem fora do padrão entrando em um concurso de beleza como forma de protesto, justamente porque a sociedade fala para ela, de maneira velada, que ela não poderia estar ali. Ali, ou na piscina, ou chamando atenção de um cara bonitão. A sociedade fala e a pessoa gorda repete isso mentalmente todos os dias. É fácil acreditar que não pertencemos.

Do nascimento ao empoderamento, a jornada gorda

Para falar mais de corpos gordos, talvez eu tenha que falar mais da minha própria jornada. Eu falei sobre isso (e muitas outras coisas) no projeto Missão Abraço, para quem quiser assistir.

Ser gorda é sim acreditar um dia que você é bonita e no dia seguinte acreditar que ninguém vai ser capaz de te desejar. Não ver porque alguém te escolhe ao invés de algum padrão. É não achar as roupas que te sirvam, até que você desiste de procurar. É pagar mais pelo plano de saúde. É não conseguir emprego. É ser o motivo de piada, o alívio cômico. É ser colocada de maneira excludente todos os dias e, ao tentar falar, ser silenciada.

Isso só diminui quando você se empodera de seu corpo, mas isso não é uma tarefa fácil. Passar a amar o seu corpo é, assim como a “magreza bela”, uma construção que cobra um preço alto e precisa de vigilância constante de pensamento. É exaustivo. Perceber que seu corpo vai te acompanhar para o resto da vida e brigar com ele vai fazer de você infeliz é algo que demora. No meu caso, demorou 30 anos.

Mas como deixar de brigar com o próprio corpo de fato e para sempre?

Não sei se essa pergunta tem resposta. A autoestima destruída pelos padrões de beleza não se reconstrói do dia para a noite. Talvez, para um corpo gordo, a vigilância de si mesmo nunca acabe. Crescemos vigiando a comida que ingerímos. Quando desistimos desse padrão de magreza, nos vigiamos para não caír nas armadilhas mentais que já estão tão incrustradas que às vezes não percebemos de que nossos corpos não são bonitos, não servem para praia, ninguém os amará ou coisa assim.

Em determinado ponto da história, a melhor amiga de Willowdean fala “eu nunca te vi como gorda”. Mas isso é silenciar um pouco que pessoas gordas tem vidas diferentes. Ser gorda é um fato, não um adjetivo. Ser um corpo gordo no mundo é ser justamente o que a personagem coloca:
” Eu sou Dumplin’, Will e Willowdean. Gorda. Feliz. Insegura. Corajosa.”

E o filme é sobre isso! É isso que importa: uma protagonista gorda que é retratada da forma como a vida é. Por isso, assistam o filme, tentem aprender o que significa ser uma pessoa gorda e, quando sua amiga gorda falar algo sobre gordofobia, não a silencie. Talvez você precise se descontruir também.

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