Crítica: Alias Grace (Netflix – 2017) - Cinema(ação)
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Crítica: Alias Grace (Série Netflix – 2017)

Netflix vai ao passado para entender o presente e acerta novamente

Sinopse: Alias Grace conta a história de Grace. Uma jovem imigrante irlandesa que é presa por assassinar seus patrões. Após um tempo presa, um médico passa a visitá-la e interrogá-la para poder descobrir se ela é inocente ou culpada.

Diretora: Mary Harron

Roteiro: Sarah Polley

Elenco: Sarah Gadon, Edward Holcroft, Rebecca Liddiard, Zachary Levi, Kerr Logan, David Cronenberg, Paul Gross, Anna Paquin

2017 pode ser considerado o ano das séries sobre violência contra a mulher e seu lugar na sociedade. Big Little Lies e The Handmaid’s Tale, séries que tratam desse tema, dominaram o Emmy 2017 e as listas das melhores séries do ano. E em tempos em que denúncias de abuso sexual pipocam as páginas dos jornais e sites de notícia, Alias Grace, que estreou na Netflix na última semana, pode ser incluída na lista das melhores séries do ano sobre esse tema, o lugar da mulher na sociedade.

Baseada no livro homônimo, que por sua vez foi baseado num caso real e foi escrito por Margaret Atwood, mesma autora do livro The Handmaid’s Tale, que deu origem à série. Alias Grace se passa em meados do século XIX e conta a história de Grace (Sarah Gadon), uma imigrante irlandesa no Canadá, que está presa acusada de matar seus patrões, Thomas Kinnear (Paul Gross) e Nancy Montgomery (Anna Paquin). Um grupo de pessoas, capitaneado pelo reverendo Verringer (David Cronenberg), quer o perdão para Grace. Para isso, contratam o Dr. Simon Jordan (Edward Holcroft), para que possam descobrir a verdade: Grace é culpada ou inocente?

A atriz Sarah Polley (Sr. Ninguém) comprou os direitos do livro, produziu e escreveu a série. A atriz escreveu um roteiro bem amarrado, em que vai revelando os detalhes com doses homeopáticas, prendendo nossa atenção do início ao fim. Com diálogos eficientes, o roteiro te revela detalhes e situações que aos poucos vão se tornando uma grande colcha de retalhos. E por mais que queiramos saber se Grace é realmente culpada, o roteiro nos envolve de tal forma que ficamos mais interessados em conhecer Grace e o caminho pelo qual ela andou, do que realmente saber de sua culpa ou inocência. Na verdade isso acaba se tornando secundário. E o que realmente importa no final é saber qual o caminho que Grace traçou até ali e até onde ele vai chegar.

E assim como Big Little Lies e The Handmaid’s Tale, a série trata de assuntos sérios e necessários, nunca se tornando panfletário. O lugar da mulher na sociedade é discutido em diálogos duros, em falas machistas. É mostrado de forma nua e crua como as mulheres são tratadas, em especial Grace. Sem direitos, sofrendo abusos, humilhada, abandonada. Esse é o perfil da mulher do século XIX, e assustadoramente hoje muitas vezes também, e tudo isso é “discutido” na série. Alias Grace mostra aos poucos como o abuso traz graves consequências nas mulheres. Como a mulher está frágil, desprotegida  e impotente em todas as situações, mas principalmente quando está sob “os cuidados” de um homem. Sem levantar bandeiras feministas, a série aborda como o homem não consegue aceitar uma recusa. Ele se sente na maioria das vezes enganado, humilhado, e se vê no direito de fazer qualquer coisa. E personagens que pareciam ser “bonzinhos” se mostram iguais àqueles que por quem antes sentia repulsa. Alias Grace mostra como a mulher é subvalodrizada desde os tempos antigos.

O apuro técnico da série também é fantástico. A reconstituição de época é admirável. E nesse ponto os produtores foram inteligentes ao usar poucos cenários. Essa escolha propiciou que os diretores de arte conseguissem criar um ambiente impecável. Os detalhes vão desde de um botão a um sofá. Tudo é reconstituído com perfeição. Realmente parece que estamos vendo cenas passadas no século XIX. Os figurinos também são perfeitos. É de uma riqueza de detalhes absurdo. O estudo de época feito pelos figurinistas foi admirável. O tipo de tecido, o modelo dos vestidos, os acessórios, tudo se encaixa perfeitamente.

Outro ponto forte da série é o elenco. Com destaque para Sarah Gadon. Ela faz de Grace uma personagem cheia de camadas. Uma personagem com um ar misterioso, criado pela atriz através de seus olhares. Seu olhos transmitem medo, insegurança no presente, e esperança, inocência e medo no passado. Mas ao mesmo tempo temos a impressão que ela nos esconde algo. A forma como ela olha para o nada dá à personagem um ar misterioso e melancólico. Além disso, com a entonação da voz, a atriz dá a Grace um ar de inocência. Com o olhar misterioso e voz inocente, Sarah Gadon constrói uma personagem intrigante, que nos desafia e nos faz querer saber ainda mais sobre ela. Outra que está perfeita é Anna Paquin. A atriz, que ficou conhecida por ser a Vampira da franquia X-Men e a Sookie da série True Blood, consegue aqui seu melhor trabalho desde O Piano. Ela consegue apenas com os olhos mostrar raiva, decepção, ciúme e preocupação sem dizer uma palavra sequer. E quando fala, ela consegue mostrar uma doçura misturada com arrogância e insegurança no tom de sua voz.

Zachary Levi é outra grata surpresa. Acostumado a fazer comédias e personagens cômicos, seu personagem aqui traz uma certa leveza à série. E por não cair nos maneirismos da comédia, vemos nele um ar intrigante, misterioso e leve, mas sem nunca deixar a seriedade da série de lado. Já Edward Holcroft, que faz o Dr. Jordan, cria um personagem que aparenta ser forte, determinado e à frente do seu tempo, mas conforme o tempo passa ele se mostra alguém fraco, melancólico e confuso. Ele mergulha no mundo de Grace de tal forma que se transforma totalmente, se mostrando um personagem de caráter duvidoso. Essa transição nunca soa forçada, mas é natural, você realmente acredita que aquele homem pode ter existido, ou pior, que ele ainda exista.

A direção Mary Harron é exemplar. Embora seja simples sem muitos apuros técnicos, a diretora foca no que é realmente necessário. Ela usa na maioria das cenas o plano americano (aquele que pega metade do corpo), alguns planos abertos e poucos closes. Essa decisão faz com que nos sintamos na história como espectadores e cúmplices de Grace. E embora a série vá e volte no tempo a todo momento, a forma como a diretora filma nunca te deixa perdido. E a edição bem feita da série conseguiu criar um ritmo confortável, que mesmo indo e voltando no tempo não se torna enfadonho ou desinteressante, ou deixa a série bagunçada. Além disso, a montagem com cortes rápidos em momentos que Grace se lembra de certos detalhes e passagens da sua vida ajuda na criação de uma grande colcha de retalhos.  Colcha essa simbólica, mas também literal. Aos poucos ela vai se formando, e ao final podemos entender quem é Grace.  Mas só até a cena final. Ali se quebra a quarta parede e somos mais uma vez desafiados por Grace, e nos perguntamos: “Quem é essa garota?”

Sem dúvida nenhuma Alias Grace é uma das melhores séries do ano. Impecável reconstituição de época, figurinos de encher os olhos. Atuações de peso dignas de premiações. Direção exemplar e montagem eficiente. Mas acima de tudo um roteiro inteligente e necessário. Abordando temas espinhosos, Alias Grace vai ao passado e nos ajuda a entender o presente. Uma série que se passa no século XIX, mas que poderia muito bem se passar em nossos dias. Uma série que te faz pensar, que mostra o que abusos são capazes de fazer. Alias Grace é infelizmente uma série que reflete a nossa realidade. E mais um acerto da Netflix.

Necessária, real e atual Alias Grace é sem dúvida uma das melhores, se não a melhor, produção da Netflix nesse ano.

https://www.youtube.com/watch?v=7YuAd66imOQ

5

Resumo

Alias Grace é uma das melhores séries do ano. Impecável reconstituição de época, figurinos de encher os olhos. Atuações de peso dignas de premiações. Direção exemplar e montagem eficiente. Mas acima de tudo um roteiro inteligente e necessário.

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