Crítica: Eu Não Sou Seu Negro (2016) - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
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Crítica: Eu Não Sou Seu Negro (2016)

Ficha técnica:

Direção: Raoul Peck

Roteiro: James Baldwin e Raoul Peck

Nacionalidade e lançamento: Estados Unidos, 1º de outubro de 2016

 

 

Moonlight: Sob a Luz do Luar” foi o grande vencedor do Oscar 2017, em um ano em que a Academia prestigiou produções dirigidas e protagonizadas por negros. Outros filmes lembrados foram “Um Limite Entre Nós” e “Estrelas Além do Tempo” (este último não saiu vitorioso em nenhuma categoria, mas ganhou o SAG de melhor elenco). Foi uma grande consagração depois que o Oscar praticamente ignorou os artistas negros no ano anterior. Porém, é importante lembrar que foi na categoria de documentário em longa-metragem que tivemos um maior reconhecimento do negro em Hollywood, com nada menos que três obras mostrando e denunciando a opressão branca sobre os negros nos Estados Unidos. Mais que reconhecimento, o que vimos foi um necessário acerto de contas da Academia. “O.J.: Made in America” foi o grande vencedor entre os cinco indicados. Os outros dois trabalhos que também retratam um pouco da história dos negros nos EUA na segunda metade do século 20 são “A 13ª Emenda” e “Eu Não Sou Seu Negro”.

Eu Não Sou Seu Negro

A América (diga-se aí os EUA), a tão sonhada “Terra Prometida”, é no fundo a terra do racismo, da intolerância, da não-aceitação. O escritor negro James Baldwin sabia muito bem disso, o que o fez se posicionar duramente contra os horrores cometidos contra seu povo. Amigo dos ativistas Martin Luther King, Malcolm X e Medgar Evers, Baldwin também foi um grande ativista, lutando pelo fim do racismo. Ele não era tão popular quanto seus amigos, e nem tão famoso, ficando mais ‘reservado’ a palestras e entrevistas em TVs e rádios.

Quando Baldwin morreu em 1987, ele deixou algumas páginas de um texto inacabado que seria um livro sobre o racismo predominante nos EUA. Baldwin não conseguiu avançar muito nos seus escritos, mas o que ele deixou foi o suficiente para que o diretor Raoul Peck fizesse um longa-metragem que denuncia e sintetiza o que de mais intolerante e trágico aconteceu na história norte-americana em relação aos povos subvalorizados: negros e índios principalmente. Uma obra que fala e mostra elementos caros à sociedade, como segregação racial, medo, dor, revolta e impunidade.

Intelectual e de base sólida, Baldwin em um debate não se curvava a ninguém que tentasse fazer dele um fraco, um submisso que se controla com meia dúzia de palavras. Suas palestras ficavam lotadas de pessoas, e ao término ele era muito aplaudido. Por isso, a história de Baldwin também é a história de Luther King, Malcom X e Evers. Todos eles lutaram de cabeça erguida por uma América igualitária, sem ódio e sem falsas esperanças. A luta foi muito difícil, mas eles conseguiram grandes avanços, ainda que cada um agisse à sua maneira, com opiniões divergentes, porém lutando pelos mesmos ideais.

Os três célebres ativistas foram assassinados nos anos 60. Isso causou em Baldwin uma desesperança no futuro daquela nação, um descontentamento que ele carregou por muitos anos. Ele não era racista como Malcolm X e nem acreditava que todos os brancos eram maus, mas o sentimento de revolta era inevitável, e isso fica aparente em várias passagens do documentário, principalmente quando são narrados fatos que mostram tentativas em fazer dos EUA a terra dos sonhos e da fantasia, enquanto a sujeira era jogada para “debaixo do tapete”

Em várias imagens de arquivos vemos os discursos de Baldwin se atendo à desconstrução do grande mito que se criou na Terra do Tio Sam, a idealização de uma utopia, a jornada da esperança que nada mais era do que o passaporte para a intolerância que parece nunca ter fim. Nos EUA, em alguns estados a integração brancos/negros só existia nas palavras de meia dúzia de sonhadores que não conheciam a realidade das ruas, dos becos, e até mesmo das escolas onde estudantes brancos rejeitavam alunos negros, zombando deles, humilhando-os de todas as formas.

A desaceleração moral e social estava sendo escrita com sangue nos murais da história americana, e os governantes fingiam não ver ou não se importavam muito com isso. Retornando aos EUA depois de morar alguns anos na França, Baldwin encontra uma terra devastada pelo ódio e a intolerância. A nação que tanto falava do American Way of Life estava doente, e para mudar essa situação era necessário bater de frente contra os revoltosos. O ataque era contra aqueles que não aceitavam a diferença de cor da pele.

Narrado em primeira pessoa pelo astro Samuel L. Jackson, “Eu Não Sou Seu Negro” conta a trajetória de um intelectual que não aceitava uma cultura de supremacia branca. E neste quesito, Hollywood não foi poupada por Baldwin. A grande indústria do cinema mundial foi um dos maiores alvos do escritor. Segundo ele, os filmes (especialmente musicais, comédias e romances) carregavam um forte apelo que enaltecia os brancos e consequentemente esquecia dos negros. Para ele, atores como Stepin Fetchit eram colocados em cena como elementos de humor, alívio cômico, um modelo específico de caricatura que sempre ficava em segundo plano.

Os heróis eram os homens brancos. John Wayne era o grande salvador da pátria, o caubói que punia os índios pela ‘desordem e carnificina’. Assim, Hollywood estava ‘marcando território’, mostrando que não havia lugar para os povos massacrados. Também para Baldwin, Gary Cooper e Doris Day representavam modelos de apelos da inocência norte-americana. Mas o documentário não coloca Hollywood como um completo “lobo-mau”, reconhecendo que alguns filmes também mostravam e denunciavam o racismo naquele país. A grande indústria do entretenimento não era a grande culpada por toda aquela luta racial.

As falas imponentes de Baldwin são transmitidas com um vigor marcante, suas reflexões não se perderam com o tempo, mas ficaram enraizadas no consciente de uma terra intolerante, marcada pela violência. Hoje, a violência entre os povos se expandiu e virou barbárie. Está nas escolas, nos bairros de classe média alta, nos grandes centros. É uma grande batalha travada não mais apenas contra brancos e negros, caubóis e índios, mas também uma luta contra atiradores enlouquecidos em escolas privilegiadas e em shows, e de brancos contra brancos.

Baldwin estava certo em seus discursos, provando que seu povo mesmo sofrendo torturas, sendo assassinados, humilhados e destituídos de direitos, sobreviveram. Conseguiram se impor ao grande regime do ódio, elegeram um presidente negro e conquistaram um relativo respeito. Óbvio que isso não significa uma vitória completa, porque como vimos recentemente na Virgínia, a intolerância e o racismo continuam, e pelo jeito está longe de acabar, sem contar o alarmante número de assassinatos de adolescentes negros nos EUA.

Em “Eu Não Sou Seu Negro” As impactantes palavras de Baldwin perto do final são um tapa na cara da sociedade norte-americana:

“Vocês não podem me linchar e me manter em guetos sem se tornarem algo monstruoso. E além disso, vocês me dão uma vantagem imensa. Vocês nunca tiveram que olhar para mim. Eu tinha que olhar para vocês. Eu sei mais sobre vocês do que vocês sabem sobre mim. Nem tudo o que se enfrenta pode ser mudado. Mas nada pode ser mudado até que seja enfrentado.”

 

 

 

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Resumo

Uma obra forte, poderosa e necessária.

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