#ENTREVISTA: Fabrício Ramos e Camele Queiroz falam das imersões e rupturas do "Cine Odé - Cinema no Terreiro". - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
Rocha)S(

#ENTREVISTA: Fabrício Ramos e Camele Queiroz falam das imersões e rupturas do “Cine Odé – Cinema no Terreiro”.

Desde janeiro a mostra de filmes “Cine Odé – Cinema no Terreiro” abre as portas do histórico Terreiro de Odé, em Ilhéus-BA, para o acesso gratuito do público com a exibição de temáticos e debates que contribuem para o processo de resistência da cultura cineclubista e na quebra de preconceitos e paradigmas que envolvem as religiões brasileiras de matizes africanas e indígenas.

O projeto é realizado pelo Bahiadoc – Arte e Documento, sob a produção e curadoria dos cineastas Fabrício Ramos e Camele Queiroz, que juntos organizam e estruturam as sessões mensais do cineclube que estimulam a valorização e a convivência cordial e respeitosa entre as diferentes expressões de arte e fé.

Nessa entrevista exclusiva eles falam em uníssono discurso sobre a criação do Cine Odé, suas experiências com o Terreiro, a intolerância religiosa da nossa contemporaneidade e outras temas de grande importância para o “fazer” cinematográfico.

ENTREVISTA

1.) O “Cine Odé – Cinema no Terreiro” é um projeto que une a cultura cineclubista à um resgate histórico e autoafirmativo do candomblé. Essa intertextualidade entre o cinema e a fé ancestral entre Brasil e África colabora na quebra do imaginário e dos preconceitos que cercam essa religiosidade?

O cinema é expressão também de nossa cultura. Se olharmos com atenção, desde os anos 1950 as tradições afro-brasileiras aparecem no Cinema, mas às vezes de forma ambígua. O cinema Novo, no início dos anos 1960, em filmes de Glauber (Barravento, 1961) e mesmo de Geraldo Sarno (Viramundo, 1965), tendia a considerar a religião, qualquer religião, um fator de alienação do povo. A exceção da época foi “O Pagador de Promessas”, que mostrou uma visão mais simpática do Candomblé e abordou a marginalização e a intolerância das religiões africanas diante de religiões institucionalizadas. Este, inclusive, é o filme de nossa quarta sessão mensal, a sessão de abril, que começa no dia 30. Depois a coisa foi mudando. O próprio Geraldo Sarno fez “Espaço Sagrado” (1976), documentário que passamos na Mostra e que busca revelar e aprofundar o conhecimento de ritos e fundamentos do Candomblé. Glauber também passou a problematizar mais conflituosamente a razão e o misticismo em seus filmes. E muitos outros filmes (desde Nelson Pereira dos Santos até diversos documentários independentes) apareceram revelando visões mais diversificadas, simpáticas às religiões africanas, respeitando a sofisticação da cultura dos Orixás e buscando revelar a riqueza das tradições religiosas que sincretizaram, junto à religião dominante, conhecimentos de origens africanas e indígenas. Portanto, essa rica cinematografia que apareceu com essas outras visões,  inclusive filmes realizados por adeptos das religiões, existe e o problema agora é a lógica do acesso a ela: precisa ser mostrada, exibida, conhecida. Temos a internet que disponibiliza vários desses filmes. Mas a experiência coletiva de ver o filme, essa partilha presencial e, mais ainda, dentro do Terreiro, é poderosa. Acreditamos que o cinema tem um poder sem igual para revelar aspectos da própria vida, das visões sobre a vida, a cultura, a fé humana, e de interferir no imaginário das pessoas e de estimular descobertas e a reconfigurar relações e visões de mundo.

 

2.) A exibição dos filmes acontece dentro do Terreiro de Odé, em Ilhéus-BA. A acessibilidade do público ao solo sagrado dos orixás e das divindades africanas, foi pensando intencionalmente como instrumento de ruptura do distanciamento entre o espaço religioso e o imaginário humano?

Não foi uma intenção consciente, buscando possíveis efeitos simbólicos ou práticos, embora temos visto que sim, o Cine Odé, a cada sessão, tem diminuído distanciamentos, seja entre moradores do bairro e o Terreiro, entre os filhos de santo da casa e mesmo entre pessoas que nunca tiveram nenhum contato com o terreiro, às vezes nem com a  religiosidade, mas que apareceram lá atraídos pelo Cinema e afirmaram que a experiência foi marcante, pelo filme e pelo local, pelo conjunto de fatores, que impactam o imaginário. O Terreiro de Odé tem uma história muito rica, mas atravessada pela tragédia que foi o assassinato de seu fundador, dentro do Terreiro. Para nós, a história do terreiro não é única, mas emblematiza as histórias de resistência e afirmação que marcam as lutas das religiosidades de matrizes africanas e indígenas por suas permanências. O Terreiro de Odé já não opera como terreiro propriamente. O espaço está lá, depois de enfrentar abandono e situações críticas devido a vários fatores delicados, tentando se manter de pé como um espaço voltado para a o conhecimento da cultura dos Orixás e do seu fundador, Pedro Faria, que teve uma trajetória importante na paisagem religiosa de Ilhéus e em toda a região. Pensamos que a Mostra Cine Odé contribui com a dinamização do espaço, e o próprio espaço, por sua história e beleza, intensifica e amplia o impacto dos filmes, cujas temáticas se ligam à valorização e ao conhecimento das religiões africanas e indígenas. Sob certo ponto de vista, a experiência de ver um filme se relaciona com uma a experiência do sagrado, requer uma certa comunhão, certa imersão. Talvez por isso as conversas livres com o público depois de cada exibição no Cine Odé tenham sido, até aqui, muito intensas e emocionantes.

 

3.) Em diversos veículos de comunicação – principalmente na internet – vemos casos de violência e desrespeito oriundos de um sentimento de intolerância religiosa cada dia mais intenso e nocivo. Qual o papel que o “Cine Odé” tem nessa luta dos terreiros e seus membros contra as manifestações de ignorância e ausência de alteridade que o candomblé é vítima até os dias atuais?

Esperamos que o Cine Odé, dentro de seus limites, alcance nas pessoas que participarem o mesmo que alcança em nós: não somos adeptos de nenhuma religião, mas nos sentimos gratificados de conhecer e vivenciar, em alguma medida, a riqueza e os mistérios dessas tradições religiosas, que são vívidas, experienciais. Acreditamos que as pessoas não nascem para ser intolerantes e desrespeitosas. Como dizia Pasolini, se referindo aos jovens que se comportavam como fascistas:  “Talvez uma simples experiência diversa na sua vida, apenas um simples encontro, tivesse bastado para que seu destino fosse outro”. Acho que a arte, e o Cinema, são capazes de promover, de favorecer, esse encontro singelo e transformador. Se o Cine Odé tem algum papel, é esse: o de reconhecer o valor desses encontros e de apostar no cinema como um encontro.

 

4.) As sessões do cineclube são resultados de uma curadoria conjunta entre vocês dois. O processo de escolha dos filmes segue algum método especial, ou ele é exclusivamente guiado por critérios artísticos que definem qual filme será exibido ou não? 

O critério primeiro que nos orienta na escolha dos filmes é no sentido de privilegiar a grande variedade de representações cinematográficas na história do nosso cinema nacional com filmes nos quais o universo das religiões de matriz africana é colocado em cena, sejam eles documentais ou de ficção. Outro critério que sempre estamos atentos é mesclar, numa mesma sessão, filmes que se complementem ou mesmo que se contradigam, refletindo as próprias práticas religiosas que, embasadas em tradições orais, se diversificam e se diferenciam de região para região, às vezes até de uma casa para outra. O filme “Santo Forte”, de Eduardo Coutinho, por exemplo, gerou uma discussão enérgica, assim como “Professor Agenor”, de Marcelo Serra e Freddy Ribeiro, que exibimos em março. São filmes que refletem idiossincrasias e visões religiosas diferenciadas, ainda que referenciadas essencialmente pelas mesmas origens. Outro fator que interfere muito nas nossas escolhas é ir sentindo o que mais mobiliza o público e com isso vamos equacionando a programação aos anseios e desejos do público. Para além dos critérios artísticos ou formais, a história do terreiro de Odé nos move em busca de filmes que, de alguma maneira, reflitam e potencializem o caráter de resistência e de reconhecimento da cultura afro-índia. Muitos curtas, por exemplo, são filmes independentes descobertos – ou garimpados – em pesquisas incertas no Youtube, orientadas apenas pela vontade de descoberta de algo novo, às vezes desconhecido, mas que ao assistirmos provocasse algo que harmonize com as razões do Cine Odé.

 

5.) A idealização do projeto partiu de alguma identificação e/ou experiência pessoal de vocês com a temática ou foi fruto de uma livre escolha de caráter cultural, artístico e social?

O cinema nos aproximou pontualmente do Terreiro de Odé. Em 2003, ano da morte de Pedro Faria, Fabricio fez um curta sobre religiosidade em Ilhéus. Não conhecia Pedro Faria nem o terreiro, nem pôde entrar ou falar com ninguém lá, porque o terreiro estava de Luto. Dez anos depois, retomamos o mesmo tema daquele curta e voltamos a Ilhéus, sem saber o que encontraríamos nem sequer fazer contato prévio com alguém ligado ao terreiro. Mas chegando em Ilhéus, a experiência de fazer o filme se transformou em um processo de descobertas. Resultou no nosso curta “As Cruzes e os Credos”, finalizado em 2014. Fazer o filme nos aproximou de Maria Marta, filha de santo de Pedro Faria e liderança que, com a ajuda de algumas pessoas, luta para manter de pé o terreiro de Odé. Surgiu uma relação de amizade que nos levou a pensar em realizar o projeto: exibir filmes no Terreiro, promover conversas sobre os filmes e ver a casa cheia de gente e de ideias, se não em torno de um evento religioso, em torno de um evento cultural e artístico, com impacto social.

 

6.) O “Cine Odé” estimula a valorização e o conhecimento das culturas religiosas brasileiras de matizes africanas e indígenas, e teve apoio financeiro do Fundo de Cultura da Bahia, através do edital público de Agitação Cultural 2015 da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SECULT). O apoio dos órgãos públicos à projetos engajados na propagação de conhecimento e na facilitação do acesso à novas culturas e produtos culturais diversificados, seria um dos vieses importantes e eficazes nesse combate ao preconceito e ao ódio religioso?

Contra o ódio, a arte. E a arte e a cultura precisam de estímulos para se concretizarem, tornando as políticas públicas culturais cruciais para o desenvolvimento cultural, a diversificação de iniciativas e para a criação artística. Os editais públicos são mecanismos de democratização do acesso aos recursos governamentais. Trata-se de um mecanismo em disputa e compete à sociedade e aos agentes do setor cultural propor e definir as políticas culturais mais democráticas e adequadas, considerando essa uma luta política e social relevante, e não uma dádiva governamental. Por isso, os mecanismos como os editais devem ser debatidos, criticados, repensados e melhorados continuamente, regulamentados como Lei, e não como mera política de governo, suscetível de ser interrompida a qualquer tempo. O fato é que o Cine Odé só é possível por conta dessas políticas, no caso, do Governo do Estado, através da Secretaria de Cultura e do edital de Agitação Cultural, que inclusive enfrenta vários problemas e protestos por conta de falhas em encaminhamentos da secretaria, apontadas por vários proponentes. O nosso projeto aconteceu, mas também enfrentou sérios problemas frente à Secult. Isso mostra que, por um lado, os editais são suscetíveis de falhas e precisam ser melhorados, tanto na gestão técnica, gerencial e conceitual quanto na transparência do processo, e por outro, que é importante que eles existam e dinamizem urgente e democraticamente a nossa produção cultural. É esse o desafio político de todos aqueles que querem realizar a Cultura através de ações e expressões concretas.

 

7.) Façam um convite especial para os cinéfilos, os admiradores da cultura do candomblé e as pessoas que lá no fundo ainda guardam um certo receio em relação as práticas religiosas dos terreiros, para irem até Ilhéus e conferirem as próximas sessões do “Cine Odé – Cinema no Terreiro”. 

O Cine Odé, que começou em janeiro e vai até junho, acontece sempre no último final de semana de cada mês, lá em Ilhéus. As sessões tem apresentado filmes diversificados e um público crescente. A Mostra oferece uma Van para facilitar o acesso do público ao Terreiro de Odé, que fica no Alto do Basílio, cujo acesso não é difícil, mas também não é tão fácil (é preciso subir uma boa ladeira). A casa já não funciona como um Terreiro, mas quer se consolidar como espaço cultural voltado para o conhecimento da cultura dos Orixás e que preserve também a memória de seu fundador, Pedro Faria. Apesar de ser tombado pela Prefeitura de Ilhéus, somente de poucos anos para cá o Terreiro se recuperou, com muita luta, do estado de abandono. Por tudo isso, a presença de cada um é vital. A cada sessão, contamos com a participação de uma convidada ou convidado especial para conversar depois das exibições: artistas, pesquisadores, amigos do terreiro etc. Os filmes que temos escolhido valorizam o interesse e a participação ativa do público e a participação não requer qualquer tipo de aprovação. Ao contrário, a crítica e o debate, sempre respeitosos, são desejados também, aliás, são imprescindíveis, fica aí a nossa provocação. Por tudo isso, as experiências nas sessões têm sido marcantes e queremos que sejam ainda mais. Todos estão convidados a vivenciar o cinema como “espaço sagrado” da arte em relação direta com a vida e com as realidades sociais concretas que, em meio à resistência e afirmação, demonstram profunda identificação com a arte e a expressão cinematográfica. Toda a programação e informações sobre as sessões da Mostra podem ser acompanhadas no site do projeto Cine Odé e na página da Mostra no Facebook, para os adeptos da rede social. Garantimos apenas que a alegria pela participação de cada um será mútua!

 

cropped-logo-blog-ode-cumprida

 

Deixe seu comentário