Terra Selvagem (Wind River, 2017) | Tensão, polêmica e ideologia - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
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Terra Selvagem (Wind River, 2017) | Tensão, polêmica e ideologia

Quantas vezes neste ano você já leu a frase: “este é um dos melhores filmes do ano”? Possivelmente várias vezes. Tais declarações dificilmente não despertam a atenção de quem a lê. E foi o que aconteceu comigo e o filme “Terra Selvagem”, novo trabalho de Taylor Sheridan, agora escrevendo e dirigindo seu próprio longa.

 

No filme acompanhamos uma agente novata do FBI (Elizabeth Olsen), que faz par com um caçador local com extensas ligações com a comunidade local e um passado que o persegue (Jeremy Renner), para investigar um assassinato de uma garota local em uma remota Área de Preservação Indígena Americana, na esperança de solucionar sua misteriosa morte. O que Taylor Sheridan faz aqui é coletar uma série de casos reais de mulheres desaparecidas na Reserva de Wind River e condensa-las em um único caso onde ele abordará todos os seus temas.

 

Para falar desse filme optei por dividir o texto em duas partes, sendo a primeira livres de spoilers e a segunda já abordando assuntos específicos da trama.

 

Parte I – A Narrativa

Estamos diante de um thriller investigativo com foco na tensão e no discurso ideológico de seu realizador, que para quem ainda não associou o nome, estamos falando do roteirista de filmes como “Sicário – Terra de Ninguém” de 2015, dirigido por Dennis Villeneuve, e “A Qualquer Custo” de 2016, dirigido por David Mackienze. Este último, aliás, rendeu uma indicação a melhor roteiro original no Oscar 2017. Isso deixa claro o talento de Taylor Sheridan em criar roteiros, densos, violentos e bem construídos. Esses filmes citados acima, formam uma espécie de trilogia temática. Segundo o próprio roteirista “‘Terra Selvagem’, [é] como uma conclusão de uma trilogia temática que explora a fronteira norte-americana moderna. Começando com a epidemia de violência através da fronteira com o México no filme “Sicario: Terra de Ninguém”, daí mudando o foco para a imensa riqueza colidindo com a pobreza no Texas em “A Qualquer Custo”. “Terra Selvagem” é o capítulo final e a catarse desta trilogia”.

 

“Terra Selvagem” assim como seus antecessores, expõe as dificuldades do povo norte-americano em conviver com em suas fronteiras e como isso reflete numa sociedade intolerante, egocêntrica e violenta. Temas como misoginia e xenofobismo estão muito presentes no filme, em especial na figura da agente do FBI, Jane (Olsen) que sofre todo tipo de preconceito, seja por ser mulher, seja por ser “padrão-branca-magra”. Parece não fazer sentido alguém ser vítima por ser padrão, mas Sheridan começa construindo muito bem a personagem e suas conflagrações. Jane é recebida com desconfiança por parte da comunidade indígena que a enxerga como uma garotinha privilegiada da cidade, que pouco ou nada tem a acrescentar naquele reserva, assim como pelos policias locais que a trata com total desdém.

 

Já o personagem de Renner, o caçador Cory, é uma espécie de herói inexpressivo atormentado por um passado não resolvido. Ambos os personagens tem bons começos de arco, explorando seus conflitos e dando peso às suas ações, mas após o primeiro ato, todo conflito parece ficar apenas em Cory que continua ganhando camadas enquanto Jane acaba se tornando uma personagem desinteressante e unidimensional durante boa parte do longa. Os conflitos de Cory vão se desenvolvendo aos poucos com informações dada no tempo certo, tornando-o um personagem muito interessante. Ao contrário do que acontece com Jane. Ela surge como essa garota da cidade, sem qualquer conhecimento do local e sendo alvo de comentários depreciativos por todos os lados, mas fica por isso mesmo. Não há nada que gere o mínimo de interesse por parte do espectador que não seja a interessante dupla que ela faz com Cory e o mistério que aquela história carrega.

 

Algo que ajuda muito o espectador a se manter conectado com a história é a eficiente trilha sonora de Nick Cave e Warren Ellis (disponível no Spotify), repetindo a qualidade que ambos atingem em “A Qualquer Custo”. O Score que mistura ritmos tribais com melodiosas composições em um grave e melancólico violino, constrói a tensão que o filme pede. Por muitas vezes, essa trilha lúgubre acaba funcionando melhor que o próprio texto proposto por Sheridan que esbarra na falta de naturalidade e na excessiva frieza de seus diálogos.

 

Entretanto o longa funciona muito bem quando essa frieza no texto é carregada de sentimentos oriundos de traumas explorados anteriormente. Há por exemplo um diálogo onde Cory conversando com o pai da garota assassinada, praticamente discursa palavras duras e frias que são como socos no estômago, mas no contexto, fazem sentido estarem ali. Não se trata da frieza para apenas parecer soturna. Outro acerto está na cinematografia de Ben Richardson, que explora todo ambiente gelado daquela Reserva Indígena. O branco está sempre presente na fotografia contrastando sempre com o vermelho do sangue que representa a violência daquela região. Uma vez que estamos presenciando um caso de uma jovem garota sendo violentamente assassinada, fica clara a simbologia do branco da inocência sendo manchada com o vermelho da brutalidade daqueles homens.

 

 

 

A escolha do diretor em assumir a direção de “Terra Selvagem” se mostra acertada para diferenciar cada um dos filmes dessa trilogia, e ainda que Sheridan ainda seja um diretor inexperiente (esse é apenas seu segundo longa) ele consegue criar boas cenas de ação e constrói muito bem o suspense. O uso de constantes planos-abertos revelam a ameaçadora Reserva de Wind River e sua dimensão. As transições entre os eventos presentes e eventos passados são criativas e bem executadas dando dinamismo ao filme e auxiliando no bom ritmo dele.

 

“Terra Selvagem” é um filme de discurso potente e sem meias palavras para denunciar o abuso dos norte-americanos contra a população indígena, em especial a mulher índia. Uma obra que certamente provoca o espectador e gera debate acerca de seu posicionamento ideológico.

 

 

Parte II – A Temática

Vale lembrar que a partir daqui teremos spoilers do filme, e caso você não o tenha visto, recomendo que o faça e depois retorne para discutirmos esse tema.

 

É fato que todo filme é a visão de seu autor sobre um determinado assunto, e Taylor Sheridan deixa isso bem claro em seus roteiros. Um exemplo disso é “A Qualquer Custa” e sua crítica ao capitalismo predatório dos sistemas bancários americanos que lucram em cima da pobreza e do desespero do mais pobres. Pode-se concordar ou não com essa visão, mas ela está lá, exposta e bem construída. Algo parecido acontece aqui, em “Terra Selvagem”, mas com uma diferença – a maneira como essa ideologia é construída.

 

Em seu filme anterior, Sheridan consegue criar um personagem (Chris Pine) com toda multidimensionalidade necessária para que suas ações sejam condenadas ao mesmo tempo justificadas dentro da história que nos é apresentada. O mesmo não acontece com Cory (Renner). Aqui, Cory faz justiça com as próprias mãos como se fosse um executor do Código de Hamurabi, e não satisfeito em saciar sua sede de vingança, o faz com requintes de tortura, não havendo na construção de sua ação, qualquer dubiedade. Muito pelo contrário, seu ato é totalmente apoiado e incentivado por todos os demais personagens da história. A justiça no final acaba virando puramente vingança sem qualquer questionamento. Um selvagem “olho por olho, dente por dente”. E não estou nem me referindo ao mérito de concordar ou não com as ações do protagonista, e sim na forma rasteira com que o roteiro os constroem ao fazer com que odiemos o abusador para que justifiquemos a ação final de Cory. Taylor Sheridan já se mostrou capaz de dar socos em nosso estômago com debates profundos e dúbios, mas aqui o faz de forma unidimensional e maniqueísta, enfraquecendo o debate e rasterizando um tema tão importante.

 

“Terra Selvagem” está longe de ser a obra-prima que ele parecia ser, mas tem bons momentos, mesmo falhando na construção de seus discursos. Fiquemos então aguardando o novo projeto de Taylor Sheridan para a Netflix chamado “Yellowstone” na expectativa de que diretor-roteirista consiga promover ideais que gerem debates, não apenas uma imposição rasa de sua ideologia.

 

Leia mais:

Texto sobre o filme na Cobertura do Festival de Sundance

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