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“Solaris” – (1972)

Solaris é um filme de Andrei Tarkovski.

“Voltamos, pois, sempre ao mesmo ponto: há só um Tempo real e os outros são fictícios. Que é em efeito um Tempo real senão um Tempo vivido ou que poderia o ser? Que é um Tempo irreal, auxiliar, fictício, senão aquele que não poderia ser vivido efetivamente por nada nem por ninguém? (Henri Bergson)

“[…] vinte um dia após o lançamento de nossa expedição, Vishnyakov, biólogo e Fechner, físico, partiram em uma missão de exploração sobre o oceano de Solaris em uma aeronave. Como eles não retornaram, ordenamos uma busca. O nevoeiro estava muito denso e tivemos que abortar a busca. Todas as naves de resgate retornaram à estação, menos o helicóptero pilotado por Burton. Ele voltou apenas quando já estava escuro e foi correndo aos seus aposentos obviamente em estado de choque, tão estranho para alguém que já pilota há 11 anos. Ele se recuperou após dois dias, mas nunca mais deixou a estação e se recusa a se aproximar da janela que dá para o oceano. Ainda está sob cuidados médicos, mas deseja fazer um pronunciamento de grande importância o qual acredita que poderá afetar todo o futuro do Projeto Solaris.” (Diálogo em Solaris)

Solaris é baseado no livro de ficção científica do autor polaco Stanislaw Lem, o qual também inspirou “2001, uma odisséia no espaço” – filme dirigido por Stanley Kubrick. O início da película se dá na casa de campo dos pais de Kevin, onde todos escutam uma entrevista dada por Burton (Vladislav Dvorzhetsky) – um astronauta quando na ativa –  a respeito de uma nave espacial soviética que trafegava ao redor do planeta Solaris numa de suas expedições. Ao visitar a casa de família e tentar conversar com Kevin (Donatas Banionis) sobre o que vira em sua expedição, tanto ele – que fará sua jornada à Solaris, quanto os cientistas que estavam presentes na tal entrevista, caçoam de Burton alegando que ele apenas teve algum tipo de alucinação e racionalmente estava incapaz quando chegou perto do planeta.

A realidade que Tarkovski exala com sua criação na tela é de fato algo perturbador. Não se afasta do que temos como imagem a nossa própria vida, assim como, não se aproxima de algo ficcional. A abordagem do enredo não se dá por vias de escape com o intuito de contar e reproduzir o que quer ser contado, logo mutuamente conversa com o tempo espaçado, longo e com a constância do ser humano inserido nesse estado temporal. É possível sentir essa duração permitindo também, percebermos o silêncio que recheia o andamento da narrativa, a qual não se dissipa, e pelo contrário, viva, permanece até o fim do filme. O tempo dos filósofos e cientistas seria um tempo esquemático e espacial, incompatível com o tempo que é o próprio tecido do real, ou seja, o tempo que Henri Bergson define como sucessão, continuidade, mudança, memória e criação.

A noite envolta por uma penumbra de fumaça retrata a nostalgia, o abandono e as memórias que não valem mais a pena serem guardadas. A fogueira que rodeia um diálogo banal pela simplicidade e complexo pelo seu conteúdo traz à cena algo de sublime, como uma foto antiga tirada por alguém de fora, por um outro olhar. A jornada de Kevin não é mostrada no filme, apenas uma eventual turbulência durante o caminho e sua chegada que ocorre ao redor de algumas surpresas.

Em Solaris, a continuidade do tempo se dá de forma não cronológica: no presente vive-se memórias e as cores mudam de lugar. A cada momento temporal temos acesso ao preto e branco, a um azulado escuro e também, a um colorido que estaria mais próximo da realidade de Kevin, que chegara a poucas horas na espaçonave soviética. Contudo, tais cores, precisamente, não demarcam de fato cada uma delas, à um tipo específico de tempo, logo havendo misturas, contratempos e confusões de consciência. Num certo momento, Kevin encontra-se com sua ex-esposa Khari (Natalya Bondarchuk), a qual não se lembra de tudo e na verdade não entende muito bem o encontro com seu ex-marido. A princípio ela o encontra e o chama de Kris e confessa não entender direito o que está fazendo ali; suas memórias estão partidas, ao meio. A materialização da mulher que um dia Kevin amou é quem ou o quê aparece para ele, e não ela mesma em si. Tais intervenções, explica um dos cientistas à Kevin, começaram após o início dos testes com raios-x, com uma grande quantidade de radiação, na superfície do oceano de Solaris; é como se o oceano espionasse o cérebro daqueles humanos que ali chegavam e deste modo, acessasse suas memórias e desejos. Durante esse encontro, o mesmo cientista diz algo um tanto que interessante: “[…] a noite aqui é o melhor momento, agente pensa que está na Terra. Se colar tiras de papel no ventilador, a noite fará você pensar na brisa sobre as árvores.”

Quando Khari sofre um ferimento físico no corpo além de não sentir dor, seus machucados somem e se curam, como se nada tivesse acontecido. Kevin, quando tenta amenizar sua dor percebe o acontecido e se assusta com o fato de nada ter acontecido com ela, tanto psicologicamente quanto fisicamente. As memórias de Khari são as memórias de Kevin, já que ela, por mais que esteja fisicamente presente na espaçonave, é uma criação embasada no conhecimento e do que Kevin sabe sobre ela. Muito do amor que rodeia as cenas configura o amor idealizado ou aquele objeto de desejo e perfeito que idealizamos ser aquilo que amamos, porém, ao passo que isso ocorre, confundimos o amor verdadeiro o qual está além dessa imaginação com o ideal desse sentimento, logo acabamos por amar a ideia desse amor. Por mais que Khari seja real, ela faz parte de uma outra realidade, à ficcional, à da ideia.

Embora haja essa questão em aberto no filme, Kharia seria a única visitante dessa espaçonave? Porque temos a sensação de que não, só que depende do ponto de vista.

Ver também o comentário do filósofo Sloveno Slajov Zizek: (https://www.youtube.com/watch?v=zZVZJUU3sT8)

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