Crítica: Soundtrack (2017) - Engenho e Arte no Cinema
5 Claquetes

Crítica: Soundtrack (2017) – Engenho e Arte no Cinema

Soundtrack é um dos grandes nacionais do ano.

Ficha Técnica:
Direção: 300 ml (Bernardo Dutra, Manitou Felipe)
Elenco:  Selton Mello,  Ralph Ineson, Seu Jorge, Thomas Chaanhing, Lukas Loughran
Nacionalidade e lançamento: Brasil, 06 de julho de 2017
Sinopse: Decidido a realizar uma exposição de arte, o fotógrafo Cris (Selton Mello) viaja até uma estação de pesquisa polar para se isolar e tirar selfies que capturem as sensações causadas por uma série de músicas pré-selecionadas. No local, ele conhece o botânico brasileiro Cao (Seu Jorge), o especialista britânico em aquecimento global Mark (Ralph Ineson), o biólogo chinês Huang (Thomas Chaanhing) e o pesquisador dinamarquês Rafnar (Lukas Loughran). Os cinco precisam conviver juntos e descobrem diferentes perspectivas sobre a vida e arte.

Pra quem gosta de filosofia e arte, especialmente música e fotografia, terá um prato cheio aqui. E não é só um deleite temático, Soundtrack é cinema puro, do mais alto nível. Temos um exemplar que se distancia das comédias-padrão que inundam mês após mês o nosso cinema nacional. Contudo, Sountrack não vai na linha oposta de ser 100% hermético. Há bons momentos de risada – de um humor refinado e piadas no texto. Entendemos e nos importamos com os personagens, em especial Cris (Selton Mello).

Que pese um (necessário) arrastamento da trama, pois precisamos sentir aquela solidão e as reflexões propostas. Não se engane: se alguém falar que não há história aqui, desconfie dessa pessoa. O tempo inteiro a obra nos diz algo, seja visual, sonora ou textualmente. Contido, quase sempre, verborrágico de modo cirúrgico, Soundtrack é um desafio para o público.

E com certeza foi um grandíssimo desafio para os idealizadores, a dupla 300 ml (Bernardo Dutra, Manitou Felipe). O que eles fizeram aqui é raro não só no cinema nacional, mas em um sentido global. O filme se passa no Ártico, com neve e paisagens brancas. Pense onde foi gravado: Sul da América? No próprio Ártico? Não… o longa é todo feito em estúdio em pleno caloroso Rio de Janeiro. Esse espanto não se restringe a um par de efeitos…

A câmera de Soundtrack é intensa. Os diretores sabem o que querem e como explorar a pequenez humana ou os gigantes sentimentos/questionamentos dos personagens. Cada enquadramento é preciso e foi graciosamente pensado. A duração das cenas foi no limite, a transição sentimental e as explicações (ou falta delas), idem. Um pouco a menos ou a mais poderia afetar o frágil e potente equilíbrio aqui presente. Há, sem exagero, apenas um diálogo que sobra, ficando redundante e explícito – algo que de maneira alguma diminui o todo.

A mensagem pode ser amplificada e multi significada. O legado talvez seja um dos pontos de maior presença aqui. A partir da premissa camoniana do “engenho e arte”, vemos as diferentes formas, poéticas e tecnológicas, que fazem as nossas ações reverberarem para um além fora até da nossa percepção. Os recortes finais são o ápice disso, mas o impacto é conseguido graças a uma construção prévia, que perpassa todo o filme – e o fazer artístico.

Os poucos personagens sustentam na medida todo esse acumulo desejado. Cada ator distingue bem a própria função. A escolha de ter etnias diferentes é não só orgânica, como ajuda nesse ponto. Por um vínculo até afetivo, de ser brasileiro e carismático, Seu Jorge, mesmo com um material mais enxuto, entrega bons momentos e palavrões nada gratuitos (ao contrário do que vemos em outros filmes onde tal recurso é apenas uma muleta barata).

O brilho, contudo, fica por conta da interação entre Ralph Ineson (o patriarca do excelente A Bruxa) e Selton Mello. Ineson tem um cansaço resoluto, um misto de conformismo com questionamentos constantes. Selton, que já mostrou por diversas vezes o talento que tem, distancia-se diametralmente do Palhaço Chicó do Auto da Compadecida. Cada arrombo soa sincero. A cegueira tem um papel metafórico e literal muito bem explorado pelo ator.

Na parte técnica destaca-se, além da fotografia e dos efeitos, o som. A trilha em momento algum é apenas um cenário sonoro. Os ruídos parecem música e por vezes a música são ruídos (no melhor sentido da coisa). Esse trabalho de mixagem visto aqui é sem comparação. Se fosse um filme com mais marketing não era absurdo estar no Oscar.

Um momento a trilha, no caso a falta dela, faz um trabalho incrível. Em algumas cenas Cris coloca um fone em si ou em outros personagens. Seria muito fácil a direção escolher uma música para representar aquele sentimento. Os personagens escutam alguma coisa, mas o público não. Temos que imaginar, sentir, perceber o que está ali. Simplesmente fantástica, opção corajosa – que pode frustar alguns, porém que é perfeitamente cabível.

Depois de Deserto, outro filme nacional, também de uma estreia na direção (no caso Guilherme Webber), não imaginei veria algo tão rico. Que safra linda de diretores está vindo aí…

Enfim, serei sincero: vou usar o clichê de “falta-me palavras”. Soundtrack me tocou profundamente. Sinto que sou incapaz de extrair tudo que me foi mostrado. Contemple essa sinestesia cinematográfica mais de uma vez, é quase um desleixo visitá-lo apenas uma vez.

  • Nota Geral
5

Resumo

Soundtrack é um dos grandes longas nacionais do ano. Um misto de engenho e arte

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