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#ROCHASEMCORES🌈 – O olhar da criação de Gaby Haviaras e Tarcísio Lara Puiati em “Garoto de Aluguel”.

Chegamos à nossa 6º edição dando cores ao filme “Garoto de Aluguel” (2009). O curta metragem, vencedor dos prêmios de “Melhor Filme” e “Melhor Montagem” no 17º Mix Brasil – Festival de Cinema de Diversidade Sexual, conta a história de um brasileiro que recebe a proposta inusitada de ter as ações internas do seu organismo transmitidas 24 horas pela internet através de micro-câmeras viajando pelo seu corpo. Em meio a autópsia compartilhada ele se vê submerso nos conflitos que assombram sua identidade e seus desejos.

Pra falar mais sobre o filme, convidamos a atriz Gaby Haviaras, integrante da Cia de Teatro Íntimo e conhecida por diversos trabalhos na TV e por sua verve poética no seu canal no Youtube, que interpreta a travesti “Calipso”, e o roteirista/diretor Tarcísio Lara Puiati. Nesse debate sobre criação-arte-identidade eles compartilham as experiências, os caminhos e os desafios desse trabalho.

 

A construção de Calipso por Gaby Haviaras (atriz).

 

 

1.) No curta metragem “Garoto de Aluguel” você interpretou a transformista Calipso. Como é uma atriz “cis”, vivenciar os conflitos e dissabores de artistas marginalizados e estereotipados da cena cultural noturna?

Incrível! Praticamente um presente que a profissão nos dá, a possibilidade de vivenciar situações, conflitos de uma vida que não é a sua realidade. Nunca saberemos o que se passa na pele e na história do outro, viver um personagem de algum universo distante do seu, é uma grande pesquisa sobre o humano, uma investigação sobre você mesmo. Que preconceitos eu tinha ou tenho que vão ser colocados a prova quando você aceita viver e defender aquele personagem. Isso é uma das coisas que mais me encantam na profissão, esta troca de pele. 

 

2.) Como foi seu processo de criação da personagem? Sua longa experiência no teatro foi importante nas fases de encontro, compreensão e criação de identidade da Calipso?

No inicio duvidoso! rs Quando o Tarciso Lara Puiati, diretor do filme e dramaturgo da nossa companhia, me convidou eu fiquei muito na duvida em aceitar ou não. Porque a outra travesti seria feita por um ator homem, pelo Thiago Mendonça, e como seria essa diferença na composição dos personagens? Pois uma mulher montada pode ser apenas uma mulher montada! Como eu a deixaria com mais cara de travesti do que de mulher montada? Mas se o diretor tinha feito esta opção, quem seria eu para duvidar que ia ficar bom. Aceitei e fui criar. 
Queria construir um corpo que não era o meu, fiz 6 meses de treino de hipertrofia e ganhei 5kg de massa muscular. Com o treino minha taxa de testosterona aumentou, reduzindo o tamanho do meu seio, aumentando meu trapézio e braços, e ajudando a modular a minha voz. Eu tinha a impressão que precisava vestir um vestido e não parecer mulher delicada e sim mais andrógena para me aproximar do que acreditava compatível na composição das duas travestis.  
Os laboratórios foram muito profundos, fomos acompanhados pela Lorna Washington que deu toda a assistência, roupa, histórias de vida, orientação. Um dos momentos mais impressionantes do laboratório foi na Lapa. A Lorna nos levou para a associação LGBT que tem na Lapa, fomos ambos montados nos personagens eu e Thiago. Ela nos apresentou com amigas do sul, conversamos por horas, fomos para a esquina da Men de Sá acompanhar o trabalho, mas elas sabiam que não estávamos ali disputando o ponto, rs e não sabiam que eu era mulher. Foram horas com o olhar do outro! O jeito que as pessoas olham, o preconceito, o desejo, o olhar afiado. Até o momento que para um carro e me chama de “viado”. Pronto! Eu não era mais uma mulher montada, tive a certeza que agora podia entrar no set, Calipso existia e era travesti. Durante as gravações, o set sempre visitado por amigas de Lorna, ninguém achava que por baixo da Calipso era uma atriz mulher. Sem minha formação de atriz eu jamais chegaria a este lugar. 
 Gaby Haviaras, Lorna Washington e Thiago Mendonça nos bastidores do set de “Garoto de Aluguel”.
3.) Recentemente entrevistei e li outras entrevistas da Maria Clara Spinelli, uma das principais e mais conhecidas atrizes trans do país, e uma das citações que me marcaram e fez refletir, foi quando ela disse que não queria só interpretar personagens transgêneros. Essa representatividade também deve expandir-se pra uma liberdade interpretativa? A Maria Clara interpretar uma mulher e a Gaby interpretar um travesti também contribui na quebra de paradigmas e demarcações territoriais na vida de quem carrega a diversidade de gênero no cerne da sua existência?
A arte é a ferramenta do mundo que abre a porta para o infinito. É o que temos nas mãos para transformar, comunicar e opinar sobre como vemos e queremos o mundo. Como atriz, na minha opinião, Maria Clara pode e deve interpretar mulher, homem, trans, todas camadas de atuação possíveis. Eu interpretar um travesti, um homem, são capacidades que posso e devo desenvolver nas minhas ferramentas como atriz. Somos atrizes e o céu não é o limite. O paradigma que tem que ser quebrado é de quem olha de fora, vai deixar de dar um personagem para uma atriz incrível porque ela é trans e o personagem não é trans? Quem escala coloca a gente em caixas. Para mim tem que haver essa mudança em quem pensa no filme, na historia, nos atores. Do mesmo jeito que se o autor não escreve que o personagem é negro, ninguém vai pensar na possibilidade de ele ser negro, só se estiver na rubrica. 
4.) “Garoto de Aluguel” foi filmado em 2008. Hoje, exatos 08 anos depois, o curta mostra-se atemporal e quente. Em tempos de intolerância, de uma crescente e corrosiva onda de conservadorismo e casos de barbárie e desumanidade sofridos por LGBTT’s a representação das questões de gênero no cinema, na TV e no teatro é um pilar importante pro avanço da humanidade?
Extremamente necessário! De necessidade pública! Desde de que o mundo é mundo e os gregos faziam isso nus no Epidauro! Mas como você disse, nesses tempos inglórios, talvez tenhamos que pegar a ferro e fogo esta causa e leva-la de qualquer jeito para as artes. Porque os investimentos e incentivos para projetos com esta temática vão ser estrategicamente reduzidos. Em 2008 Garoto de Aluguel foi produzido com dinheiro próprio, não teve patrocínio nem grandes divulgações e distribuição. É um curta com prêmios e que teve portas abertas em festivais fora do Brasil. Mas se o Tarcísio não tivesse coragem de contar essa história, com sua produção própria, não estaríamos aqui falando de algo tão relevante. Nós artistas, de todos os gêneros, que detemos o poder da poesia e da capacidade de transmutar o olhar para o mundo, devemos colocar nossos projetos com causas LGBTT, Raciais, Sociais nas ruas. Mão na massa!
A gênese de “Garoto de Aluguel” por Tarcísio Lara Puiati (roteirista/diretor).

 

1.) O título do curta metragem, “Garoto de Aluguel”, é homônimo ao clássico de Zé Ramalho. Em 20 minutos, o filme aborda de forma multifacetada questões de gênero e revela personagens mergulhados em conflitos de identidade. É notório que houve um cuidado na intertextualidade biográfica e a narrativa audiovisual da sua obra. Como se deu o processo de construção dos personagens para que não ocorresse a reprodução de estereótipos normatizados ao longo da representação desses conflitos pessoais? Quais as principais referências “Queer” na construção da estética do seu curta?

Acredito que quanto mais camadas damos a um personagem, mais interessante ele fica. Quanto mais possibilidades de interpretação de um mesmo personagem, melhor. A proposta do curta foi a de fugir aos estereótipos tanto nos personagens quanto na linguagem. Nisso, a montagem foi fundamental, desconstruindo as ações e quebrando os diálogos, deslocando tempo e espaço. A maior referência queer é o universo da Lapa, no Rio de Janeiro, no qual mergulhamos. Desse universo nasceu a direção de arte do curta.

 

2.) A sequência inicial em que o protagonista é escolhido pra participar de uma experiência tecnológica flerta com as narrações de ficção científica. Qual o propósito desse hibridismo entre tempo/espaço no filme? Existe uma crítica ao sistema tecnológico antropofágico da nossa contemporaneidade?

Essa interferência de ficção científica foi uma tentativa de exacerbar o mundo de superexposição em que vivemos, fazendo uma crítica. Quis propor no roteiro um tempo em que a invasão de privacidade fosse tamanha a ponto de haver interesse pelo que acontece dentro da pessoa, literalmente. Selfies já não bastam, precisamos ver os órgãos vitais, o funcionamento do organismo. E tudo em tempo real. É para onde estamos caminhando.

 

3.) Há duas transformistas no curta. Uma é interpretada pela atriz Gaby Haviaras, e a outra pelo ator Thiago Mendonça. A escolha de uma atriz “cis” pra interpretar a personagem “Calipso” foi especialmente intencional? Há alguma ligação entre essa escolha artística e a proposta dialética do filme?

O curta é uma história de identidades perdidas. Esse é um tema que me interessa. Então, era fundamental para mim poder misturar os gêneros e jogar com isso na escolha do elenco.

 

 

4.) Grande parte do elenco de “Garoto de Aluguel” são da Cia de Teatro Íntimo. Qual a importância desse intercâmbio cênico entre TV, cinema e teatro, sobretudo para quando se fala em pluralidade das produções? Existe diferença, para o diretor, em lidar com essas nuances de palcos?

O desejo de realizar esse curta surgiu das nossas experiências teatrais e do meu contato com esses atores. Trazer o teatro para o cinema foi um caminho natural. Foi mais fácil contar essa história trabalhando com atores amigos, parceiros de teatro, colegas da nossa Companhia de Teatro Íntimo. Nossa intimidade fez toda a diferença nos ensaios e no set.

 

Link pra assistir o curta metragem na íntegra: https://vimeo.com/24402247

Link do canal da Gaby Haviaras no Youtube: https://www.youtube.com/user/gabrielahaviaras

 

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