Crítica: Campo Grande (2016) - Cinem(ação) - Resenhas, trailers, críticas
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Crítica: Campo Grande

Campo Grande apresenta contrastes, infância e abandono de um jeito raro no nosso cinema.

Ficha técnica:
Direção: Sandra Kogut
Roteiro: Sandra Kogut, Felipe Sholl
Elenco: Carla Ribas, Ygor Manoel, Rayane do Amaral, Julia Bernat
Nacionalidade e lançamento: Brasil, 02 de junho de 2016.

Sinopse: Duas crianças são largadas na porta de um prédio com a referência do endereço e nome de uma das moradoras. Regina, que não vive uma fase boa, depara-se com um novo problema: acolher Ygor e Rayane na tentativa que eles reencontrem a mãe.

Campo-Grande

Como é bom ver um filme que não duvida da nossa inteligência. A narrativa de Campo Grande pode causar estranheza, a sensação de lacunas e até de que algo está errado. De fato há lacunas e muita coisa está errada, mas isso é papo para daqui a pouco. O que ocorre de fato é uma falta de exposição em muitos momentos. A direção faz a trama evoluir usando outros meios, não pautados em um didatismo desnecessário, para contar a história.

Campo Grande não tem um protagonista destacado. Iniciamos acompanhando Rayane, passamos para o Ygor e Regina, sendo possível colocar o Rio de Janeiro como, mais que um cenário, um personagem ativo e essencial. Isso permite ao público ser guiado entre diversos prismas. Ora vemos o mundo pelo olhar das crianças, o que torna as desventuras objetos a serem tratados de uma forma distorcida – uma carta de Pokemon, um banho quente e ausência de batatas fritas ganham importância. Ora somos conduzidos por um mundo de aparências, decisões complexas e contradições de Regina – representante de uma classe média decadente, cobrada para resolver a situação com as crianças e a própria filha, além de demonstrar um descaso patente/instinto maternal latente.

O longa apresenta rimas visuais e alegorias o tempo inteiro. Lila decide não morar mais com a mãe Regina e exalta o pai. Ygor e Rayane clamam pela figura maternal. Ambos – pai de Lila e mãe de Ygor e Rayane – ausentes da tela, sem se relacionarem com os filhos, mas sempre presente no discurso e ações dos personagens. A casa alagando, um sofá grande que não cabe mais ali e os pertencem empacotados e empilhados, coadunam com a situação social de Regina e a necessidade de mudanças. As placas nas obras e os seguranças que impedem as duas crianças de circularem com total liberdade, também evidenciam esse não pertencimento.

Campo-Grande

Lila abandona a mãe. Os irmãos abandonados pela mãe. Regina abandonando a zona de conforto. Tudo isso em meio a um Rio de Janeiro também largado. A cidade é mostrada de um jeito não convencional: chuvosa e feia. Mostra o lado rico (zona sul) e regiões pobres (Campo Grande) sem cair no clichê. Ambos familiares, mas irreconhecíveis para quem vê o RJ a partir ótica das novelas. A cidade em obras denota a destruição e reconstrução que vivem aqueles personagens, não à toa Rayane é encontrada ao lado de um canteiro.

“Nós já é grande” diz Ygor em um dado momento. Não, Ygor, você não é. Sim, Ygor, você é. O jovem de uns 8 anos transita entre uma consciência cruel – ao ter que explicar o que é sequestro, ao querer tirar a irmã do abrigo e ao deixar dinheiro para a mãe – e uma inocência própria da idade – ao pedir um vídeo game que supostamente a mãe e irmã também gostariam, ao escutar Lila tocando piano e ao não saber descrever com clareza o ambiente da casa onde morava.

Regina também é multifacetada. Ao mesmo tempo que pede para a empregada levar as crianças para longe e os faz dormirem na área de serviço, tem a sensibilidade lidar com as elas (mas nem tanto com a filha adolescente) e o senso de urgência para encontrar parentes dos garotos. E evolução aqui é explícita e orgânica – muito ajudado pelo ótimo trabalho da atriz Carla Ribas.

Na parte técnica, temos uma trilha que é composta por contrastes entre Love (Jonh Lennon), Rebolation e Talismã (Leandro e Leonardo), além de Ygor cantarolar um: “mamãe, eu quero mamar… dá a chupeta para o bebê não chorar”, todos muito bem encaixados na história. O design de produção sutil, porém detalhista em vários cenários, principalmente na casa de Regina e no obrigo. Uma fotografia trabalhada que transparece o já citado Rio de Janeiro cinzento e nada caloroso.

Campo-Grande

A direção de Sandra Kogut capta as expressões dos atores de modo a nos colocarmos na pele de cada um. Em enquadramentos mais fechados, lembrando um Filho de Saul, por vezes ignorando o que ocorre ao redor. Todavia, o locus é muito importante e ele surge na medida correta e mostrando com precisão, portanto, não só o quem, mas a influencia do onde. As quebras na narrativa, quase desnorteando os mais desatentos, sem mostrar o desenvolvimento em tela determinados pedaços é arriscado. Aqui funcionou. Creio que o perigoso recurso se mal utilizado poderia por tudo a perder. Tal ferramenta dá uma sensação de vazio e deslocamento caros àqueles personagens.

Outro ponto de difícil trato é colocar no centro da obra atuações infantis. E os jovens Ygor Manoel e Rayane do Amaral dão conta do recado. Ela mais no começo do filme e ele no restante da exibição. Optar por usar os nomes dos personagens de forma homônima aos atores pode ter dado um certo conforto aos pequenos. Rayane passa uma emoção sincera no primeiro arco. Ygor tem presença no segundo, destaco a cena do piano e no abrigo. Carla Ribas brilha de forma inequívoca. O peso da experiente atriz é essencial aqui. Ela consegue ser dramática, vigorosa e sutil. Os momentos cotidianos como na janela, carro e banho demostram isso. O selo Fátima Toledo está presente na preparação dos atores.

Campo Grande é, pela forma como trata o tema e pelas qualidades técnicas, uma grande obra. Consegue ter uma marca própria, sem nunca soar distante. É local ao trazer um retrato da cidade, mas universal nos dramas e relações. Poeticamente delicado e documentalmente realista. Sinceramente, sinto não ter conseguido arranhar com todos os significados. Então, para além destas palavras, confira nos cinemas este filme tão especial.

 

  • Direção
  • Roteiro
  • Atuação
  • Montagem
  • Trilha
  • Design de Produção
  • Som
4.9

Resumo

Campo Grande é, pela forma como trata o tema e pelas qualidades técnicas, uma grande obra. Consegue ter uma marca própria, sem nunca soar distante. É local ao trazer um retrato da cidade, mas universal nos dramas e relações. Poeticamente delicado e documentalmente realista.

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