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Um homem entre gigantes: breve reflexão

Já eram 21h50 quando nos chamaram para o embarque. As pessoas do local estavam falantes, muitas crianças e famílias viajando para o mesmo destino que eu. Estranhamente quando todos se alinharam e formaram as filas, de acordo com o número de seus assentos, as falas diminuíram e o som do ambiente pareceu estar mais evidente. Malas, sacolas, casacos, fones de ouvido, celulares, tablets. Todos tomavam cuidado para não deixar nada para trás, nem pertences nem familiares.

Entreguei o cartão de embarque para a funcionaria da companhia aérea e segui pelo corredor até o avião. Informei à aeromoça o meu assento, “corredor de lá”, disse ela. Acomodei-me o melhor que pude. Torcia para que ninguém (exceto a minha mãe que estava comigo) sentasse ao meu lado – sabemos o quão apertado é o assento de um avião na classe econômica, mas essa discussão fica para outro dia.

Ao levantar vôo, alegremente apertei a tela touchscreen localizada à minha frente para que ela acendesse. No menu inicial selecionei “filmes” e, em seguida, “lançamentos”. Muitas opções apareceram, algumas já tinha ouvido falar, outras não reconhecia nem os atores. Investi no filme “Um homem entre gigantes (Concussion, 2015)”. Confesso que o principal atrativo foi ter visto que Will Smith interpretava um médico da Nigéria. Fiquei curioso, configurei as legendas em português, coloquei os fones de ouvido e reclinei minha poltrona.Will and Omalu

Como é de se esperar, este filme me fez pensar sobre muitas coisas (será que todo mundo pensa tanto quanto eu?). Serei breve na descrição da história e do elenco, quero apenas contextualizar minhas reflexões. O time escalado é Will Smith, Alec Baldwin, Albert Brooks, David Morse e Gugu Mbatha-Raw. Estes astros, mais o diretor Peter Landesman e toda a equipe técnica que contribuiu direta ou indiretamente para a construção do filme, ficaram responsáveis por contar a história do médico neuropatologista forense, Bennet Omalu. Um homem brilhante, com títulos e formações sem fim que foi atraído até os EUA em busca do grande sonho americano. Cá entre nós, as mesmas motivações que ainda mobilizam milhares de pessoas da América Latina e Brasil.

Rembrandt - A lição de anatomia do Dr. TulpDr. Omalu (Will Smith) trabalhava com autópsias e, neste cotidiano, deparou-se com um ex-jogador de futebol americano, Mike Webster (David Morse). Bennet fica intrigado com o caso e percebe que Mike morreu por um distúrbio mental causado pelos repetidos impactos na cabeça enquanto ainda praticava profissionalmente o esporte. Além deste caso, outros ex-jogadores continuavam a se suicidar alegando alucinações e instabilidades emocionais incontroláveis. O problema, é que Dr. Omalu mexeu com as pessoas erradas, as que tem dinheiro.

Todos concordam com o fato, o futebol americano gera anualmente centenas de milhares de dólares, promove empregos, traz investimentos, e deixa muita gente milionária. As propagandas do “Super Bowl” configuram o minuto mais caro da televisão mundial. Porém, além de mexer com uma indústria multimilionária, Bennet Omalu ainda colocou em questão um esporte que tem uma proporção afetiva enorme aos americanos. Para você ter uma ideia, não queriam nem que ele buscasse a causa da morte de Webster, era doloroso demais. O que isso lhe custou? Bem, entre outras coisas, uma série de ameaças, sair do emprego, mudar de cidade e mais de U$20mil dólares para desenvolver a pesquisa.

american footballPois bem, enquanto eu estava lá entretido com o filme e me deliciando com banquete de biscoitinhos e bolachinhas que as comissárias de bordo haviam me oferecido, comecei a alimentar os meus pensamentos. O direcionamento da minha reflexão aqui se dá no seguinte sentido: quando foi que colocamos o dinheiro e nossos interesses pessoais na frente de qualquer coisa? Quando foi que a minha preocupação com o outro passou a se estender apenas até onde me é interessante financeiramente?

Pensemos, a publicação dos resultados da pesquisa de Bennet geraria milhões de dólares a menos de lucro para alguns poucos privilegiados da indústria do futebol e, neste caso, ficou evidente que o interesse financeiro estava acima da preocupação com os próprios jogadores da liga. Eles mesmos não sabiam que poderiam sofrer de distúrbios mentais por causa da própria profissão. Quando se nega o acesso à informação e ao conhecimento, se nega também o acesso à cultura e às possibilidades de escolha.

Quando as luzes do ambiente se acenderam, dei-me por mim e minha cabeça voltou para onde eu estava. O comandante da aeronave anunciou “o tempo no local está fechado e com chuva leve”. Em seguida um pedido “voltem suas poltronas às posições verticais e mantenham os cintos afivelados, não se esqueça de checar se a mesinha à sua frente está travada”. Enfim, pousamos.

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