Entrevista: Ricardo Targino, diretor de "Quase Samba"
Entrevista: Ricardo Targino
Cinema Nacional

Entrevista: Ricardo Targino, diretor de “Quase Samba”

Entrevistamos o diretor Ricardo Targino, do filme “Quase Samba“!

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Foi entre tantas postagens do Facebook, enxurrada de informações, que eu conheci o projeto “Quase Samba“. E não demorou muito para descobrir que o filme seria exibido na minha cidade. Distribuído no Brasil de forma independente e inovadora, “Quase Samba” está chegando ao público sem utilizar apenas as salas comerciais, mas também por meio de centros culturais e cine clubes, entre outras iniciativas que garantem a exibição gratuita do filme.

Foi graças a esta oportunidade de assistir, bem como à disposição do cineasta, que gentilmente topou responder a algumas perguntas, que conseguimos, agora, falar um pouco mais sobre o longa.

“Quase Samba” é um filme que envolve diversas questões. Sua forma de chegar ao público abre a temática da distribuição do cinema no Brasil. A trama do filme fala do lugar da mulher e do homem na sociedade, e ainda não oferece nenhum tipo de interpretação mastigada, mas deixa para que o espectador se aproprie da trama. Ricardo Targino fala sobre todas estas questões nesta entrevista. Envolvido com diversas lutas sociais, o cineasta sabe tratar muito bem da maneira como o cinema deve chegar ao povo brasileiro, e mostra que entende bastante sobre Brasil.

É interessante destacar que o filme foi gravado após diversas coincidências, a começar pela maneira como Ricardo conheceu Mariene de Castro, a protagonista, e como se deram as gravações: a primeira cena do filme a ser gravada foi o parto da atriz, que estava grávida, e as filmagens do restante do longa ocorreram depois, quando ela estava grávida novamente, e o menino que aparece no longa é o filho dela, que vemos nascer. Na conversa, Targino fala muito bem sobre a forma como a produção de cinema deve se deixar abraçar pelas mudanças e intempéries. Confira a entrevista, e aproveite para conhecer melhor este diretor, que promete enriquecer o cinema brasileiro nos próximos anos.

 

Entrevista: Ricardo TarginoQuase Samba é o seu primeiro longa, mas a sua direção é muito segura. Como foi a sua experiência em projetos anteriores?

Tive a imensa sorte de encontrar o cinema ainda na UFMG, onde estudei jornalismo. Era o início do ForumDoc.BH [festival de cinema e fórum de antropologia] e havia um ambiente de cinefilia ímpar. Foi lá que fiz meu primeiro curta, “Substantivo Abstrato Plural” com o qual ganhei o Festival VisualSound em Barcelona, dedicado a novos criadores. Morei por quase sete anos na Espanha e estes anos na Europa foram decisivos para minha educação de espectador. A internet começava a fazer sua enxurrada horizontalizadora de acesso aos filmes e era uma maravilha poder assistir aos filmes nas salas de Barcelona e voltar a eles por download. Sempre fui autodidata. E gosto dos caminhos que a gente encontra sozinho. Em 2010 fiz “Ensolarado”, curta que me deu enormes alegrias. Vencedor de festivais como Guadalajara e Toulouse o filme foi exibido na Berlinale, em Locarno e em mais de 50 países. Curioso: o filme que fiz mais perto de casa, no Jequitinhonha onde nasci, foi o filme que me levou mais longe. Para mim não é por acaso.

 

Quais cineastas mais te influenciam?

O cinema moderno sempre me provocou muito. Glauber, Godard, Pasolini… Referências decisivas para uma poética fílmica que me tocou desde sempre. Meus anos na Espanha me aproximaram também do cinema espanhol: Almodóvar, Julio Medem, Isabel Coixet, Almenábar e tantos outros. Tenho uma ligação enorme com a América Latina, com suas redes culturais e de ativismo político. O cinema argentino contemporâneo vem desse diálogo. Criadores como Lucrecia Martel e Lisandro Alonso, de quem sou amigo e que como eu mantém fortes vínculos com sua origem social fora do eixo, vindos das bordas de seus países.

 

“Quase Samba” é um filme que valoriza muito o feminino. No entanto, a trama acaba terminando com uma carga grande aos personagens masculinos. Isso é uma forma de questionar o lugar do homem na sociedade? Como você vê o espaço do masculino quando se precisa tanto valorizar a mulher?

Eu acho que o século XXI precisa tirar o macho do armário. Não faz mais sentido que os homens heterossexuais sejam educados para serem trogloditas. Homens mais sensíveis e inteligentes, capazes de superar o machismo do patriarcado secular é parte da mutação antropológica que já está em curso. O final do filme faz esta provocação: família é núcleo afetivo. Ali vemos, a partir da dor e da ausência da mãe, surgirem duas famílias com os melhores pais possíveis. Os que criam com amor.

 

Você aproveitou a oportunidade de filmar a Mariene grávida nas gravações do filme. Acho interessante o cinema feito de forma “orgânica”, sempre se utilizando de eventos não planejados ou, por exemplo, das pessoas que vivem no local de gravação. É esse tipo de cinema que você gosta de fazer? Até que ponto você gosta de controlar os acontecimentos em torno de um projeto?

Todo controle é remoto. O Renoir dizia que apenas se arma o set para que milagres aconteçam. Eu faço cinema de mediunidade, não como mística espiritual, mas como meio através do qual se cruzam fluxos de sentido e afeto. A maternidade se colocou no centro da história. E não apenas com Mariene encarnando uma Oxum ao redor do qual tudo gira. Veja que curioso: quando fui preparar o elenco decidi não levar Otto para a fazenda onde fizemos a imersão. Pela natureza de Fernando me parecia fundamental mantê-lo na estranheza. Nesta etapa fizemos também a caracterização de Shirley e seus diversos looks. A primeira cena que rodei com Otto foi justamente o final no embate com Shirley. Quando Otto chegou ao set, Cadu já estava saindo do camarim pronto e notei que Otto estava nervoso e comovido. Fui até ele preocupado, imaginando ser insegurança, mas não era. Ele pegou o laptop e me mostrou a foto de uma mulher loira muito parecida com aquele look de Shirley. Me disse: é dona Arlete, minha mãe. Estas coincidências para mim não são por acaso, nem são escolhas conscientes. São pequenos milagres que o cinema permite. E eu estou apenas começando. Me perguntavam se eu teria preparador de elenco e eu dizia que era mais fácil contratar um preparador de diretor, brincando, claro. Mas não pertenço a esta categoria de artistas que se veem a si mesmos como seres iluminados, pavões exibindo a si mesmos. Sou peão. No meu set não há qualquer diferença de tratamento. Cadu Fávero, quando tirava Shirley do corpo, tornava-se assistente de platô ajudando a distribuir água e organizar os deslocamentos da equipe. Fui sortudo de contar com a generosidade destes grandes artistas.

A distribuição alternativa de Quase Samba está sendo um sucesso de público. Esta é a saída para o cinema brasileiro independente? O que precisa mudar na distribuição do cinema no Brasil?

Do jeito que está não pode ficar. Não é justo com o Brasil. O Glauber já dizia na década de 60 que o povo era o que faltava. Conquistamos pra nós uma indústria em formação. Não é justo que o cinema brasileiro se esqueça do povo do Brasil. Povo que, aliás, paga a conta. Eu estou fazendo o que posso com meu pequeno filme de baixo orçamento. Torço para que seja só o primeiro de muitos que queiram encontrar nosso tempo e nossas questões no tecido mesmo da vida, nestes territórios todos dos Brasis. Precisamos devolver ao país o cinema que o povo financia. É assim que inventaremos o cinema do século XXI. É assim que nascerá o cinema popular brasileiro. Eu acredito que é justamente uma indústria da criatividade popular que vai agregar valor ao nosso desenvolvimento e promover uma reinserção soberana do Brasil no cenário global. Nossa diversidade é nossa maior riqueza.

 

Acredito que o espectador tem direito de se apropriar de uma obra e interpretá-la da sua maneira. Você já viu alguma interpretação muito diferente de tudo que você pensou para Quase Samba?

O filme é de quem vê! Por isto as lacunas, o extra-campo como recurso narrativo. Para que o espectador possa fazer seu próprio caminho. Há algo muito bonito acontecendo: pessoas que assistem o filme e voltam a vê-lo. Tem gente me mandando mensagem dizendo já ter visto o filme 3 vezes e querendo ver de novo. O que mais pode esperar um amador autodidata de sua primeira fita? Estou muito feliz com tudo isto. E minha gratidão só aumenta.

Entrevista: Ricardo Targino

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