Eu Cinéfilo #17: Garota Exemplar (Gone Girl) – A Trilha Sonora
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Eu Cinéfilo #17: Garota Exemplar (Gone Girl) – A Trilha Sonora

Trent Reznor e Atticus Ross entregam excelente trilha que combina ruídos eletrônicos e fantasmagoria

Por Lucas Scaliza

 

GarotaExemplar_DavidFincher_poster_cartaz_brasileiroGarota Exemplar (Gone Girl, 2014), o novo suspense do diretor David Fincher (Clube da Luta, O Curioso caso de Benjamin Button, Zodíaco) ganhou uma trilha sonora excepcional pelas quatro mãos de Trent Reznor e Atticus Ross, dupla também responsável pelas trilhas originais de A Rede Social (vencedora do Oscar) e Os Homens que Não Amavam as Mulheres (que levou um Grammy), ambos produções também dirigidas por Fincher.

Em alguns filmes, a trilha ajuda a desenvolver os personagens, pontuando suas jornadas e até antecipando elementos narrativos. Não é o caso de Garota Exemplar. Fincher usa a trilha como forma de complementar as situações, conforme elas vão surgindo. Um dos indícios que evidenciam isso é o nome das 25 faixas que compõem a trilha sonora, que servem como lembretes de cada cena: “O que fizemos um ao outro”, “Tempestade de açúcar”, “Pista um”, Pista dois”, “Tecnicamente desaparecida”, e por aí vai. Se você já assistiu ao filme – ou leu o livro de Gillian Flynn em que o filme se baseia – identificará bem a que situação cada música cabe.

Mas a maestria está em como essa trilha para situações aparece: sempre de forma sombria, como um fantasma que paira sobre os personagens. Afinal, é um filme em que ninguém sabe de nada: o marido, vivido por Bem Affleck, volta pra casa e não encontra a esposa. Ele não sabe dizer quem são os amigos dela, lugares que frequenta, etc. E ele esconde coisas da esposa e do resto das pessoas também. Enquanto a investigação e a busca pela esposa desaparecida seguem, temos momentos de flashback da esposa por meio de seu diário que vai completando as lacunas (o que acaba se revelando um engodo e causa uma grande reviravolta na trama). Por isso, a música em Garota Exemplar serve mais para nos lembrarmos a todo instante de que há algo errado ali, há peças faltando, há ruídos na comunicação e nas intenções.

E de ruídos ninguém entende melhor do que o veterano Trent Reznor, também frontman da pesada e lúgubre banda estadunidense Nine Inch Nails. Atticus Ross é músico e compositor inglês que se mudou para os Estados Unidos em 2000. Trabalhou como produtor e programador de cinco discos do NiN: With Teeh, Year Zero, Ghosts I-IV, The Slip e o último Hesitation Marks. Trabalhou ainda em alguns discos do Korn (banda que faz música pesada, flerta com o eletrônico e gosta de afinações diferentes) e no álbum Year Of The Black Rainbow do grupo de metal alternativo Coheed and Cambria. Ou seja: fazer os graves soarem graves e criar um ambiente opressor que dá o tom do suspense policial não é problema para essa dupla.

Mas é aí que está o surpreendente. Há muito espaço para trilhas sentimentais em Garota Exemplar. “What we have done to each other”, que abre a trilha e o filme, evoca o sentimento da perda, não desesperada, mas misteriosa, como se algo simplesmente evapora-se e restasse apenas um grande sinal de interrogação na sala da casa. As notas ondulam indefinidamente, uma após a outra, com ritmo impreciso. Aliás, essa mesma incerteza é recorrente em forma de som em outras faixas/cenas, como em “With suspiction”, “Something disposable”, “Still gone” e “A reflection”. A faixa “Sugar storm”, executada quando o casal protagonista se conhece e tomam um banho de pó de açúcar, pontua um momento terno com ritmo regular e notas brilhantes. Ainda que existam ruídos eletrônicos bem evidentes – que permeiam toda a música do filme – o principal é ajudar a construir um momento mais íntimo.

Vale notar também que é uma trilha digna de David Lynch em muitos momentos. Conforme o filme segue e o mistério vai ficando maior – afinal, as cenas contadas pelo diária da esposa desaparecida confrontam as afirmações do marido –, nunca perdemos de vista a materialidade e a realidade do caso. Nunca o filme tenta, imagética ou textualmente, sugerir algo de sobrenatural. Mas a música incute esse sentimento no telespectador por usar notas que perduram, tremolos e acordes em teclados e sintetizadores que criam uma aura para o resto dos elementos sonoros. “Just like you” e “At risk” têm essas características, mas a faixa mais lynchiana de todas é “Like home”, um perfeito mix de melancolia, fantasmagoria e hard feelings.

O uso dos graves é mais delicado, na maior parte das vezes, do que o de Hans Zimmer, compositor de trilhas para a nova trilogia do Batman e de A Origem, todos dirigidos por Christopher Nolan. Zimmer abusa dos sopros com notas graves, trilhas que de tão pesadas nos trazem o materialidade do metal aos ouvidos (quem consegue ouvir aquele “Baaauuumm” de A Origem e não pensar no estrondo de um enorme sino de cobre?). Reznor e Ross têm seus momentos mais intensos em Garota Exemplar nas faixas “The way he looks at me” e “Consummation” (que acompanha a cena mais violenta do filme), em que os instrumentos de sopro (tubas, trombones, trompetes, etc) comuns nas trilhas de Zimmer são substituídos por ruídos eletrônicos enervantes que vão ganhando volume e aumentando a tensão.

Reznor e Ross mixando a trilha do filme. Foto: Rob Sheridan

Reznor e Ross mixando a trilha do filme. Foto: Rob Sheridan

Reznor e Ross não trabalharam a trilha após o filme estar terminado, como geralmente ocorre. Eles faziam as músicas conforme o filme e suas cenas iam sendo feitas, com o roteiro em mãos. Depois as trilhas são mostradas ao diretor e juntos decidem se há algo mais a fazer ou mudar para que a trilha bata com o tom exigido pelo perfeccionista Fincher. Ao USA Today, Reznor disse que sua trilha sonora não ficasse em evidência, que ela se tornasse uma presença quase subliminar. Bem, este é o único aspecto em que ele talvez tenha falhado, pois a música é sentida desde o princípio e acompanha a trama tanto quanto seus personagens.

Ao encomendar a trilha de Garota Exemplar, David Fincher tinha em mente a música que ouviu em seu quiroprata: não era autêntica, mas tentava fazê-lo se sentir bem. Ou seja: um som que não é realmente aquilo que se apresenta. E essa falsidade ou hipocrisia resume não só a trilha, mas toda a trama e o que David Fincher e Gillian Flynn (que é a roteirista da produção) quiseram dizer com seu filme. Muito mais do que a investigação e as reviravoltas da trama, o que está em jogo é a hipocrisia das relações entre marido e mulher, vizinhos, pais e filhos, mídia e a forma como a TV explora os sentimentos de uma nação com julgamentos genéricos e apressados, como os humores do público mudam e são manipulados, e como a recessão econômica dos EUA ajuda a trazer essas coisas para fora de todo mundo. E a trilha é testemunha de tudo isso, pairando feito um fantasma que nunca esteve lá.

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Texto escrito por:

Lucas Scaliza – Blog Escuta Essa!

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