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Uma carta de pêsames. Uma culpa arraigada

oresgatedosoldadoryan_1Steven Spielberg é um americano orgulhoso. Não hesita em enaltecer a nação que acolheu seus pais e formou seu caráter. Questionador, inteligente, mas ainda assim, orgulhoso. E justamente por sua inteligência, ele compreende a culpa dos americanos por tantas guerras e matanças que, se não são promovidas pelo governo mais bélico do mundo, ao menos são financiadas por ele, mesmo que indiretamente.

Filmes como “Amistad”, “Munique”, “O Resgate do Soldado Ryan” e o recente “Lincoln” trazem, em meio às imagens enaltecedoras dos símbolos representativos dos Estados Unidos da América, uma carga de culpa pelas mazelas causadas pelo país.

Em “O Resgate do Soldado Ryan”, a busca pelo soldado do título é impulsionada por uma ordem do alto escalão do exército americano. O motivo? Uma carta escrita por Abraham Lincoln em 1864 para uma senhora chamada Lydia Bixby, que havia perdido todos os seus cinco filhos na guerra civil:

“Sinto-me como deve ser fraca e infrutífera qualquer palavra minha na tentativa de reduzir de ti a dor de uma perda tão grande”.

lincoln1Nem mesmo palavras, nem mesmo filmes com mais de 150 minutos podem compensar a dor que uma mãe sente ao perder sequer um único filho, muito menos cinco deles. Em “O Resgate do Soldado Ryan”, Spielberg parte desta premissa para criar uma busca por um único soldado, afinal seus outros três irmãos se foram e um pouco da dor de sua mãe deve ser poupado. Trata-se de uma nação que não poupa esforços em valorizar o exemplo de um em detrimento de outros, o que não deixa de ser coerente com o liberalismo econômico e a criação do self-made man, que não se importa em deixar rastros de sangue pelo caminho ao oeste, desde que encontre sua riqueza em forma de ouro.

“Mas eu não posso evitar a tentativa de que o consolo pode ser encontrado nas graças da República pela qual morreram para salvar. Oro para que nosso Pai Celestial possa amainar a angústia de seu luto, e deixar-te apenas a memória dos entes queridos e perdidos, e o orgulho solene que deve ser o seu por ter colocado tão custoso sacrifício no altar da liberdade”.

É assim que Lincoln termina sua carta, que ficou conhecida como um de seus maiores legados em forma escrita. Spielberg, ao filmar “Lincoln” 14 anos após “O Resgate do Soldado Ryan”, continua a vangloriar a nação que não mede esforços para lutar em nome da “liberdade”, mesmo que esta liberdade seja aparente, cheia de amarras disfarçadas de poder, de crescimento a todo custo e de “american way of life”.*

É por isso que Spielberg parece entender muito bem essa culpa adormecida nos americanos. A culpa de quem entrou em uma guerra europeia para “salvar os judeus”, mas precisou “matar centenas de milhares de japoneses” com bombas atômicas – obviamente isto é uma visão muito simplista dos acontecimentos, mas serve apenas, neste texto, para pontuar o ocorrido e incentivar a reflexão.

Talvez seja por isso que Steven Spielberg se sinta tão conectado a Abraham Lincoln. Ambos conseguem, um por meio de carta, outro por meio de filmes, externar suas culpas arraigadas pelo que seu país fez. Maior que a culpa, certamente, é o orgulho de ser americano. Tal como crianças arrependidas, eles pedem desculpas e acreditam que isso os redime do que fizeram, seguindo suas vidas.

E como é bom olhar para o próprio umbigo, não podemos nos esquecer de que o Brasil também tem sua parcela de culpa na manutenção de seu domínio na América do Sul. Em escala menor, o Brasil também transformou, durante o século 19, o Paraguai, até então maior potência econômica da região, em um miserável pobre coitado. Para tanto, utilizou-se da morte de milhares de negros escravos na frente das trincheiras. Nenhuma carta foi escrita às mães dos escravos que lá morreram, até mesmo porque elas sequer teriam condições de ler. Muitos brasileiros nem sabem disso, o que os faz nem mesmo pedir desculpas.

Seguimos todos carregando nossos fardos, mas ainda assim orgulhosos, sem tantas diferenças. No fim das contas, a “star-spangled banner” do hino americano em nada difere do “lábaro que ostentas estrelado” do hino nacional brasileiro.

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*a tradução da carta de Lincoln foi feita para este artigo

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